Em 1969 o Bornéu foi atingido por uma pandemia de malária. A Organização Mundial de Saúde decidiu resolver o problema através de lançamento de DDT para matar os mosquitos. A medida foi eficaz e matou de facto os mosquitos. Contudo, uma catadupa de efeitos indesejáveis provocados pelo DDT levou ao desaparecimento de algumas espécies (de um inseto que comia os bichos da madeira e de gatos) e consequente proliferação de outras espécies (bichos da madeira e ratos), o que levou os tetos das casas a ruírem, e ameaças de duas novas doenças: a peste e o Tifo. A solução foi lançar de para-quedas uma nova população de gatos na ilha.

Esta é uma história verdadeira, apesar de ter algumas variações nas versões que circulam, e é um excelente exemplo de como as ações humanas para controlar sistemas ou ecossistemas complexos muitas vezes têm consequências inesperadas e criam novos problemas tão ou mais sérios do que os que pretendiam resolver.

O pensamento sistémico ou “systems thinking” (como é conhecido internacionalmente com porta-vozes como Peter Senge e o seu livro “A quinta disciplina”) é uma abordagem de resolução de problemas centrada na ideia de que a realidade não é linear, nem constituída por partes desconectadas. Em vez disso, é constituída por “wholes” ou totalidades que estão em permanente interação e que possuem características que as partes não possuem (por exemplo, um avião pode voar, mas nenhuma das suas componentes possui esta propriedade).

Esta abordagem de resolução de problemas coloca bastante ênfase na definição do problema porque compreende aspetos fundamentais, tais como: (i) na definição do problema devemos ter em conta as inter-relações entre os vários intervenientes na situação; (ii) existem múltiplas perspetivas do mesmo problema – cada interveniente conta a sua história e tem acesso a informação diferente, (iii) a usual forma de iniciar a resolução de problemas apontando dedos e atribuindo culpas gera um ciclo de culpa-> medo-> encobrimento -> erros ->culpa que deve ser evitado; (iv) a forma como o problema é definido vai determinar as ações que serão desencadeadas para a sua resolução.

Acredito que daqui a alguns anos, a situação atual pandémica que se vive no mundo vai ser usada de forma didática, tal como o Bornéu, com vários exemplos de decisões irracionais, de erros que foram cometidos por ausência de pensamento sistémico, e de definições restritivas do próprio problema.

Pensando em duas perspetivas possíveis para o problema, podemos defini-lo do ponto de vista da doença e do ponto de vista da saúde. Parece a mesma coisa, mas não é. Para começar o foco na doença implica olhar essencialmente para os hospitais e para os doentes, o foco na saúde implica pensar na saúde de todos os portugueses, física e mental e gera ações muito diferentes. Um confinamento prolongado, por exemplo, será uma medida impensável numa perspetiva de saúde (porque seria impensável colocar em risco a saúde de muitos, para tratar a doença de poucos). A perspetiva da saúde é uma perspetiva preventiva, a perspetiva da doença é curativa.

A definição do problema na perspetiva da doença tem sido mais prevalente no ocidente e no oriente a perspetiva da saúde parece prevalecer (é interessante fazer o paralelo entre a medicina oriental e ocidental onde a primeira é reconhecidamente mais holística e com mais enfoque na procura pela causa dos problemas).

Enquanto estivermos focados numa formulação bélica de luta contra a doença continuaremos a aplicar medidas do tipo ‘penso rápido’, como o confinamento – uma solução que obviamente reduz a proliferação do vírus, mas que por si só não resolve nada, podendo haver tantos confinamentos quantos os necessários até o resto do arsenal surtir efeito. Mas para o arsenal surtir precisamos de sorte – sorte para que não haja uma variante mais mortal, e para que a vacina produza efeito em todas as variantes que, entretanto, proliferam ou venham a proliferar.

Precisamos de sorte porque nos falta o engenho para perceber que isto não é uma guerra, este é maior desafio da humanidade nos últimos tempos: o de estarmos preparados para coabitar e lidar com esta e outras pandemias – não excluindo meios de luta obviamente, mas quando integrados numa estratégia global que inclua todos os intervenientes, que veja as várias perspetivas do problema e que desencadeie ações concretas que procurem melhorar a saúde da população mundial (desde erradicação da pobreza, à limitação da poluição ou do consumo animal, ou reforço do sistema imunitário da população).