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União Europeia: uma ideia improvável que deu certo… até agora

Contra tudo o que era previsível, contra os ventos da história e contra a guerra, a Comunidade Económica Europeia deixou de ser uma quimera para ser o mundo que reconhecemos como nosso. Faz hoje 60 anos – mas há um ano houve a primeira dissidência, e isso pode fazer toda a diferença. Em 1957, a […]
25 Março 2017, 14h00

Contra tudo o que era previsível, contra os ventos da história e contra a guerra, a Comunidade Económica Europeia deixou de ser uma quimera para ser o mundo que reconhecemos como nosso. Faz hoje 60 anos – mas há um ano houve a primeira dissidência, e isso pode fazer toda a diferença.

Em 1957, a Europa estava, previsivelmente, no mesmo sítio de sempre: entre duas guerras. Era assim desde tempos imemoriais: algures numa geografia mais próxima ou mais distante, vizinhos com interesses comuns, vizinhos com interesses divergentes, países que não tinham interesse nenhum para os vizinhos, vizinhos cheios de interesse para outros países, a geopolítica (uma ciência com as costas tão largas quanto a imaginação se propuser usá-la) ou simplesmente um louco mais ou menos furioso, colocavam o continente europeu há séculos sob as nuvens extremamente escuras do rebentamento de pólvora numa ou mais das suas diversas utilizações. Só no que tinha a ver com o século XX, na altura pouco mais passado de meio, a Europa só não esteve em guerra durante o curto período de 1902 a 1904 e de 1905 a 1912. Acabada a Grande Guerra, a segunda, a França já estava novamente em armas na Indochina e na Argélia e vários países europeus intervinham ou apoiavam activamente outros palcos de guerra (a da Coreia, a do Suez e a do Vietname). Nada a Fazer.

Até porque no próprio território europeu, as coisas tendiam a não melhorar: a Grécia havia sido palco de uma guerra civil, a Jugoslávia dava mostras de algum deslace e Berlim era uma espécie de laboratório experimental para desentendimentos futuros (o muro seria construído a partir de 1961). Só para piorar, os países europeus tendiam a mostrar algumas dificuldades em deixar que as suas colónias no Terceiro Mundo seguissem o seu próprio destino, sector em que Portugal se mostrou perversamente tardio, com a ONU e até o Vaticano, insuspeito de pró-comunismo, a vociferar (pela voz de Paulo VI) contra os orgulhos solitários da alma lusa.

Neste quadro, não é de todo de admirar que os primeiros esforços para engendrar, na Europa, um entendimento que pudesse servir para criar uma envolvente necessária e suficiente para a paz não tivessem dado em nada: uma apelidada Comunidade Europeia de Defesa, surgida na sequência do tratado de Paris (1952) para coordenar as forças armadas europeias, morreu mesmo antes de ter nascido, dadas as reservas do Marechal De Gaulle em matéria de partilha de poderes transfronteiriços.

Desgraçadamente, e apesar dos milhões de mortos que jaziam há tão pouco tempo sob a terra ainda infértil, os líderes europeus (esses que os livros de história entretanto tratam como heróis e estadistas como nunca mais houve) davam mostras de querer repetir os passos perdidos dos seus antecessores – que, tão pouco anos antes, andavam a brincar às ‘ententes’, umas ‘cordiales’ outras nem tanto, como quem joga xadrez sem ter a certeza das regras.

O pragmatismo dos EUA
Entretanto, do lado de lá do Atlântico, os Estados Unidos da América, pátria do pragmatismo como filosofia de Estado – que havia conseguido subjugar os últimos estertores da grande depressão da crise de 1929 precisamente lançando o país numa salvífica economia de guerra (dos outros) – olhava para tudo aquilo num arrepio. O Plano Marshall, gizado em 1947 – que prometia atirar para cima dos países europeus desfeitos pela guerra um caudal de dinheiro equivalente a uns actuais 150 mil milhões de dólares (13 mil milhões à época) – esperava por melhores dias. E os melhores dias viriam, disse o presidente Harry Truman aos seus homólogos europeus, se um conjunto alargado de países desse mostras de querer ultrapassar os seus desentendimentos históricos e apostasse na paz. E na indústria e no comércio, já agora, no sentido da construção de uma sociedade economicamente fértil e socialmente feliz, que pudesse transformar-se num parceiro decente, o que diminuiria em muito o risco evidente de o Plano Marshall vir a tornar-se um erro financeiro muitíssimo grave.

É neste plano historicamente muito pouco acolhedor, na sombras de uma guerra que estava cada vez mais fria e sem que nenhuma evidência viesse em auxílio dos que apostaram nela, que surge uma denominada Comunidade Económica Europeia (CEE), instituída pelo tratado que hoje celebra 60 anos.

O início dificilmente podia ser menos auspicioso: para além da envolvente e da história, o tratado foi assinado pela Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Desde logo, uma nota positiva: a Alemanha, culpada da guerra e da destruição que grassara na Europa entre 1939 e 1945, não era deixada para trás. A Europa, afinal, conseguia aprender com os erros, e parecia não querer repetir o desastre de 1918, quando fez tudo para manter os germanos exangues – abrindo portas ao populismo imensamente imbecil de um tipo chamado Adolfo. A geopolítica entrava ao barulho: o bom entendimento entre o eixo Paris-Berlim era fundamental para um processo de paz que se pretendesse mais perene que o fim-de-semana seguinte.

Mas também uma nota negativa: onde estava a Inglaterra? No sítio do costume: acantonada na Commonwealth – para onde iam e de onde vinham a grande maioria das trocas comerciais numa lógica de puro colonialismo; olhando para o continente europeu com muitas reservas; e admitindo que um organismo como a CEE haveria de sugar a sua própria soberania (o Brexit esteve lá sempre). A Inglaterra preferiu contribuir para a criação de uma espécie de concorrente menos musculado: a EFTA, criada em 1960, juntamente com a Dinamarca, Noruega, Suécia, Portugal, Suíça e Áustria. Face aos países que compunham cada uma das agremiações, a EFTA parecia a segunda divisão da CEE, e a Inglaterra rapidamente se apercebeu disso: em 1961, começou a bater à porta da primeira liga pedindo para entrar; mas era tarde demais: De Gaulle, um desses estadistas enormes, segundo os compêndios de história, vetaria essa vontade britânica por duas vezes (1963 e 1967) e só quando o velho marechal passou à irrelevância política é que os britânicos conseguiram finalmente um lugar (em 1973) – que agora se preparam para deixar.

Seja como for, uma coisa é indesmentível: por muito periclitante que fosse o seu início, a CEE soube acomodar mais, muito mais, países, soube gerir as suas diferenças, soube dar lugar a uma gestão cada vez mais centralizada sem nunca retirar a soberania necessária e suficiente a cada uma das partes. Mas soube ser bem maior que a simples somas dessas partes. De algum modo, contra todas as expectativas, contra os ensinamentos da história e contra a guerra (apesar do Kosovo), a CEE ainda existe.

Só não se sabe até quando: depois de muitas entradas, registou-se a primeira saída; os sentimentos europeus crescem um pouco por todo o lado – juntando a esquerda radical e a extrema-direita numa amálgama improvável, por muito que as razões de uns sejam o oposto das razões dos outros; a burocracia da união é incomensurável (e cara) e os burocratas são quem verdadeiramente manda naquilo; e quem manda nos burocratas é a agenda pós-neo-liberal, seja lá o que isso for.

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