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Valores e valor em tempos de pandemia

De salientar que, quando se trata de uma pandemia, o oceano de informação produzida à escala global é imenso, bem como as divergências públicas de opinião, o que gera desconfiança e confusão entre as pessoas; e, a prazo, deterioram as relações e os comportamentos sociais.
27 Agosto 2021, 07h15

A atual pandemia Covid-19, causada pela nova estirpe do coronavírus (SARS-CoV-2, zoonótico) – altamente transmissível nos humanos –, recolocou as epidemias e as transmutadas em pandemias (relembre-se que uma doença endémica generalizada com um número estável de pessoas infetadas não é uma pandemia), na agenda económica, social, científica, cultural e política global, sendo alvo das mais diversas reflexões.

As epidemias são crises, em que tudo depende da velocidade, quando domina a incerteza por onde começar o ataque ao estado de emergência e a ambiguidade em relação às soluções em diferentes termos: tecnologia, estilo de vida, empresas e investigação. Só em 2018, registaram-se surtos de seis das oito doenças consideradas prioritárias pela Organização Mundial de Saúde – Ébola, MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), Zika, Nipah, Lassa e Rift Valley. Há um ecossistema de capital político, social, empresarial, intelectual, financeiro, clínico e cultural a considerar, em que todas as componentes têm que estar preparadas para atuar vertiginosamente, em situação de emergência numa trajetória repleta de avanços e estagnações, de acelerações e desilusões (Heffernan, 2021).

Entre 13-mar-2020 e 17-ago-2021, morreram 4,38 milhões de seres humanos de Covid-19, profundamente doloroso para as famílias e comunidades, mas torna ainda mais expressivos os números da HIV/SIDA, quando treze anos após a primeira morte (1981) morriam no mundo 6,2 milhões de pessoas e no ano seguinte 8,2 milhões[1]. Apenas um ano após, em 1996, se registou o primeiro avanço científico, através da conjugação de duas drogas desenvolvidas por laboratórios distintos, Merck e Abbott. Uma realidade distinta, em 2015, em que rebentou uma crise de Ébola e, parte significativa dos cinco meses para avançar com o antídoto clínico, teve a ver com a criação de redes locais de ação – investigadores, biólogos, médicos, profissionais de saúde e governantes – de forma a ultrapassar as suspeitas levantadas em relação às vacinas entretanto desenvolvidas.

De salientar que, quando se trata de uma pandemia, o oceano de informação produzida à escala global é imenso, bem como as divergências públicas de opinião, o que gera desconfiança e confusão entre as pessoas; e, a prazo, deterioram as relações e os comportamentos sociais. Do outro lado, “Silêncio é igual a Morte”, conforme alguns cientistas realçaram, através de posters em conferências, permitindo uma mudança de atitude na investigação da luta contra o HIV/SIDA. Mudar as atitudes leva tempo – fomentar o envolvimento público, compreensão comportamental e consciência cultural pode ser mais difícil que a ciência pura.

Destarte, cada grupo social procura abordar a pandemia na justa medida do seu conhecimento e, sobretudo, dissimulado no seu particular interesse, sancionando uns discursos como verdadeiros e outros como não-verdadeiros; na aceção de Foucault (2004), este fenómeno ocorre de acordo com o seu código de conduta, uma espécie de “política geral de verdade”.

De facto, o discurso é culturalmente diversificado e contestado no sentido em que as comunidades humanas historicamente são influenciadas por conjuntos particulares de modos de pensar, conceitos, normas e valores, identidades, perceções, padrões de comportamento, estratégias de ação e condições institucionais (Shi-xu, 2017). Simultaneamente, tudo isso se reorganiza no e através do discurso, sendo que esses conjuntos não são, porém, fixos ou reificados, mas em relações concorrentes com os de outras comunidades discursivas.

O próprio avanço científico não é linear, sucedendo a um ritmo vertiginoso, deixando perplexos cidadãos dos países atingidos, especialmente os de reduzida literacia e cultura científica. Felizmente, o estado da arte das vacinas e o desenvolvimento científico, permitiu que as principais farmacêuticas respondessem num curto espaço de tempo. A Comissão da UE validou até hoje quatro vacinas desenvolvidas pela BioNTech e Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen Pharmaceutica NV, na sequência da avaliação positiva da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), estando já vacinados pelo menos com uma dose, 73,9% da população adulta da UE[2].

Obviamente, embora se apele à ciência, no final o discurso político sobrepor-se-á a todos os outros. Por certo, o discurso político tem por finalidade a persuasão do outro, quer para que a sua opinião se imponha, quer para que os outros o admirem. Para o efeito, socorre-se da argumentação, que envolve o raciocínio, e da eloquência da oratória, que procura seduzir recorrendo a afetos e sentimentos (Arendt, 1958).

Todavia, em certa medida é pena que assim seja. Na realidade, cada grupo com a sua visão – mulheres e homens, ativistas, cientistas, burocratas e radicais, saudáveis e doentes –, todos podem contribuir e ser corresponsabilizados pelas decisões comunitárias. Caso contrário, a eficiência económica, o desmembramento da comunidade na competitividade individual e a obediência estrita à dinâmica de criação de valor empresarial, pode ser letal, erodindo o poder da solidariedade ao próximo, entre outros valores da sociedade inclusiva que estas crises exigem, onde só uma sobre oferta extravagante de pensamento criativo e uma fé estimulante num futuro melhor podem ajudar a encontrar o caminho.

Referências

Arendt, H. (1958). The Human Condition. 2ª Edição. The University of Chicago Press.

Fiorin, J. L. (1990). Sobre a tipologia dos discursos. Significação: Revista De Cultura Audiovisual17(8-9), 91-98. https://doi.org/10.11606/issn.2316 7114.sig.1990.65501

Foucault, M. (2004). Verdade e Poder. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Edições Graal.

Foucault, M. (1997). A Ordem do Discurso. Relógio D’Água. ISBN: 9789727083534

Heffernan, M., (2021). Uncharted. Simon & Schuster.

Shi-xu. (2017). Cultural Discourse Studies scholars as builders of a sharedworld, Journal of Multicultural Discourses, 12:4, 307-311, DOI: 10.1080/17447143.2017.1394426.

[1] Número de mortes à escala mundial. Fonte: France, D., How to Survive a Prague, Picador Publishing, London, 2016.

[2] https://ec.europa.eu/info/live-work-travel-eu/coronavirus-response/safe-covid-19-vaccines-europeans_en

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