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Ver o mundo através das personagens históricas

Demora pelo menos dois anos a investigar e escrever um livro. Tempo para conhecer a fundo a personagem, conseguindo entender as suas emoções e atitudes. E, com isso, a autora torna-se a “melhor amiga” da personagem principal.
  • Armindo Cardoso para Jornal Económico
2 Outubro 2016, 19h30

Era uma vez… Todas as histórias começam assim. E um escritor sabe isso melhor do que ninguém. Que o diga Isabel Stilwell, cujo gosto pela leitura começou em criança, incentivada pela mãe, que todos os dias lhe lia um capítulo de um livro (e depois incentivava a que Isabel lesse o seguinte). Resultado: aos oito anos, Isabel já viajava livremente pelo mundo dos contos que escrevia. Embora nem sempre tenha sido fácil. A dislexia de que sofria em criança dificultou o percurso sem, no entanto, impedir a sua persistência.

Apesar de ter iniciado a universidade a frequentar o curso de História, a vontade de contar história e fazer reportagem falou mais alto. Foi assim que, em 1981, Isabel entrou no mundo do jornalismo. Os livros chegaram (muito) mais tarde, em 2001, com o “Guia para ficar a sa­ber ainda menos sobre as mulheres” e que deu início a uma es­pécie de coleção de títulos virados para os adolescentes. Tudo para descomprimir do trabalho (sério) do jornalismo.
Isabel não é mulher de se acomodar. É uma pessoa que gosta de estar constantemente à procura de coisas novas. De investigar. De contar histórias. E com uma trajetória onde o acaso também teve um papel importante.

Foi o acaso que ditou o aparecimento do seu primeiro romance histórico. Em 2007, numa reunião com a editora onde lhe foi solicitado um novo livro sobre adolescentes, Isabel recusou e, ao sair, reparou que, na estante, existiam imensos livros sobre heróis portugueses mas todos eles escritos por autores estrangeiros. Quando questionou a situação a resposta foi: “queres escrever um romance histórico?”. De início Isabel, colocou alguma resistência. Não se sentia capaz porque nunca tinha feito algo do género. Mas a escolha sobre a personagem foi imediata: Filipa de Lencastre, a única princesa inglesa que foi rainha de Portugal. Na escolha pesou o facto de não existir literatura sobre esta rainha mas, principalmente, a sua ligação com a família de Isabel: uma família inglesa a viver em Portugal.

O método de investigação iniciado no primeiro romance histórico foi depois aprimorado ao longo do tempo. Mas tudo começa com uma grelha de factos para recolher toda a informação possível sobre determinada personagem, de modo a conseguir ver o mundo através dos seus olhos e conseguir imaginar co­mo agiria essa pessoa em determinada situação, mas não ao ponto de se identificar com a ela. Aliás, Isabel confessa que não se identifica com a maioria das rainhas portuguesas; no máximo, seria uma grande amiga que a co­nhece bem. E a excitação dá-se quando se consegue encontrar bases para justificar determinada ação, quase como que montar um quebra-cabeças.

“Para mim, isto é a Catarina a andar”. Para Isabel, este foi o maior (ou um dos) elogio que já recebeu. E a validação chegou da historiadora Joana Pinheiro de Almeida, que a acompanhou na elaboração do livro sobre Catarina de Bragança e fez a revisão his­tórica do romance.

Cada livro resulta da simbiose da investigação e imaginação de Isabel e a validação histórica dada por um(a) historiador. O objetivo é sempre o mesmo: conferir o máximo de veracidade às personagens. E isso é também demonstrado nas últimas páginas de cada livro de Isabel, onde há mais informações sobre as per­sonagens (quais as reais e fictícios, o que lhes aconteceu…), onde se informa qual a linha de investigação e bibliografia utilizada.

Porque Isabel, também ela ávida leitora de romances históricos, gosta de terminar um livro com a sensação de que aprendeu algo e que ficou a conhecer melhor a época em causa. E, para isso, “preciso de confiar”. Confiar no autor e na investigação fei­ta. E Phillipa Gregory é, claramente, uma das autoras seguidas por Isabel. Sendo que há algumas semelhanças entre as duas escritoras. Mas apenas no facto de ambas escolherem como tema dos seus livros figuras femininas fortes, refere Isabel, que reconhece que a abundância de documentação inglesa sobre o período em causa, permite que a escritora britânica tenha mais liberdade de expressão, algo que não acontece em Portugal. A prova está no facto de o único romance de Isabel traduzido para inglês, o “Filipa de Lencastre”, ter sido classificado, pela crítica como uma biografia romanceada.

“Filipa de Lencastre” (o livro, claro) é “responsável” pela carreira de Isabel Stilwell no mundo dos romances históricos. Indiretamente, ditou a personagem do segundo livro. O Bispo do Porto (personalidade que, 600 anos antes, consagrou o casamento da princesa com D. João I) afirmou, no final da apresentação do livro, “Isabel, agora vais escrever sobre a única princesa portuguesa que foi rainha de Inglaterra” – Catarina de Bragança.

A partir de então, “tornou-se um vício ter uma vida dupla”. Mes­mo porque Isabel não faz uma investigação única e exclusivamente documental. A autora portuguesa gosta de ir aos sítios por onde as personagens passaram. Uma forma de tentar absorver sensações e emoções que, por vezes, passam não constam nos documentos factuais.

É o viver, o mais perto possível, o que a personagem viveu. É “acordar a meio da noite, como aconteceu enquanto escrevia o ‘Dona Amélia’, a pensar se ela teria lido o ‘Peter Pan’”. Isabel relembra a angústia de ter de esperar pela manhã para conseguir con­firmar a data de publicação do ‘Peter Pan’ e, com isso determinar a probabilidade de a rainha o ter lido – convém mencionar que, na altura, não havia ‘smartphones’ e que Isabel detesta acordar cedo (porque fica a trabalhar até muito tarde). “Sou capaz de escrever durante toda a noite”.

Os enredos dos livros de Isabel funcionam e encaixam entre si porque a escritora tem um truque: esquemas com todos os pormenores (e mais algum) colocados na parede do escritório. O que facilita a confirmação de determinados factos e permitem perceber, mais facilmente, a interligação entre as personagens. Algo que, refere, nem sempre acontece com outros escritores/historiadores. E menciona um caso específico. “Há quem atribua quatro filhas a D. Teresa no período pós Conde D. Henrique”, algo completamente impossível porque “teria 50 anos”.

O apoio da família

Isabel reconhece que nunca teria conseguido escrever um romance histórico durante a infância dos filhos. O primeiro surgiu quando estes já tinham alguma autonomia porque o trabalho de investigação e, posteriormente, o de escrita é algo muito absorvente. Para a escritora, os livros chegaram na altura certa. Uma es­pécie de “anti ninho vazio”. Isto porque o casal começou a viajar para fazer a investigação. “O meu marido é fantástico. É ele quem trata de toda a logística”. “Ele trata do apoio logístico, atura-me e faz com que eu possa ir a todos esses locais sem estar preocupada com os aspetos práticos.”

Mas, mais do que isso, há uma interação da família. No livro que Isabel está a escrever – e que estará no mercado em março do próximo ano – houve uma grande intervenção das netas de seis anos. Ninguém resiste a uma criança. E uma avó muito menos. Que o diga Isabel, que confessou estar a ser mais difícil a escrita atual. Mas o maior número de interrupções não tem de ser uma coisa má. As netas pedem para que Isabel leia partes do livro que está a escrever e depois tentam recriar, num desenho, o que ouviram. Desenhos que Isabel coloca na parede e “são muito inspiradores”.

No fim, tem de haver um período de desintoxicação. Limpar a cabeça de dois anos dedicados a uma personagem. É nesta altura que Isabel volta à investigação jornalística, uma quebra necessária para “mudar de registo”. Porque, quando está a escrever, Isabel fica ‘off’ para o mundo. É frequente, por exemplo, o marido, ao chegar a casa, mencionar determinado acontecimento do dia (desastre, atentado…) e a réplica de Isabel ser algo do género “no século XII não” ou “hoje fiz muito pior”.

Regresso aos contos infantis

A interação com as netas levou, inclusive, à elaboração de mais um livro, que estará nas livrarias a 30 de setembro.

As histórias arranjadas por Isabel para justificar, às netas, determinadas situações deram origem a um livro. Um livro que acaba por ser um pouco escrito a seis mãos. Histórias comprovadas por uma avó e duas netas. “Testadas em netos de carne e osso.”

De novo Filipa de Lencastre

Todos os anos, a Universidade de Oxford confere, ao melhor aluno de estudo portugueses, o prémio Philipa of Lencaster. Este ano, aquando da atribuição do prémio, a 1 de novembro, Isabel Stilwell irá falar sobre Filipa de Lencastre. Um convite que é, simultaneamente, uma honra e que permite honrar o pai, historiador e ex-aluno da instituição.

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