Ver “Ursos não há”, de Jafar Panahi, é também um ato solidário

O mais recente filme do realizador iraniano, “Ursos não há”, premiado em 2022 em Veneza, está nas salas de cinema em Portugal. Apesar de todas as restrições, nunca deixou de filmar.

Jafar Panahi foi libertado sob caução no dia 3 de fevereiro. O realizador dissidente passou sete meses na prisão e dois dias em greve de fome, que iniciou para protestar contra as condições da sua detenção, num comunicado divulgado pela sua família.

“Hoje, como muitas pessoas presas no Irão, não tenho outra escolha a não ser protestar contra este comportamento desumano com o meu bem mais querido: a minha vida”, afirmou Jafar Panahi, que fora detido a 11 de julho de 2022, por se ter apresentado em tribunal para acompanhar a detenção do realizador iraniano Mohammad Rasoulof, no âmbito de protestos contra o governo do Irão.

O realizador iraniano iniciara a greve de fome no dia em que centenas de personalidades publicaram um apelo conjunto, manifestando o seu apoio “inabalável” aos iranianos que protestam contra o regime e desafiam a repressão. Publicado pela ONG norte-americana Freedom House e assinada por 480 personalidades, entre elas a escritora bielorrussa Svetlana Alexievich, Nobel da Literatura em 2015 e a ex-secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, a declaração sublinha que os manifestantes “merecem o apoio total dos amantes da liberdade de todo o mundo”.

“Ursos não há”

Por amar a liberdade e por entender que o cinema é uma expressão de liberdade, Panahi filmou clandestinamente “Ursos não há”, apesar de todos os riscos e restrições. Em mais um exercício de resistência – que não chega ao extremo de “Isto não é um filme”, que realizou, com engenho, durante o período em que esteve em prisão domiciliária –, estamos perante um filme que, entre ficção e realidade, reflete as angústias e os contrastes (contradições?) do quotidiano da sociedade iraniana.

Do mundo rural aos centros urbanos, entre tradições por vezes difíceis de compreender pelos próprios iranianos e a vontade de fugir do país para quem toma uma posição política – ou apenas quer ver uma luz ao fundo do túnel – Panahi desconstrói a sua narrativa, iludindo o espetador logo na primeira cena. O plano sequência inicial leva-nos a crer que o casal que vemos na tela e que discute sobre a sua iminente partida de uma cidade situada na Turquia, junto à fronteira com o Irão, afinal, está a representar.

Quando o zoom out mostra os contornos de um ecrã de computador, percebemos que, afinal, o casal de atores que quer sair do Irão – e isso é real – está a ser filmado pelo realizador à distância, e de forma clandestina, a partir de uma aldeia nas imediações. Panahi foi proibido de filmar durante 20 anos pelo regime iraniano. Não deixou de o fazer, mesmo que para isso a sua equipa estivesse a quilómetros de distância e que as comunicações, via telemóvel, internet, não ajudassem.

Em “Ursos não há”, não há representantes da autoridade política. Não há polícia, de costumes ou outra. Mas o policiamento, leia-se controlo, é exercido por praticamente todos os habitantes da aldeia. A vigilância está lá, no dia a dia, em todos os gestos. Entranhou-se e descamba numa série de peripécias com o seu quê de burlesco, alicerçadas numa tradição (ancestral e medieval) que manda que uma rapariga prometida a um rapaz à nascença, não escape a essa teia. Uma fotografia tirada – e apagada – pelo realizador, poderá comprometer as regras instituídas… A história, ainda que fragmentada, não se fica por aqui. Antes inova e reinventa a forma de contar histórias.

 

Fugir à cultura do controlo

Jafar Panahi obteve um Leão de Ouro em 2000, no festival de cinema de Veneza, pelo filme “O Círculo”, e o Prémio de Melhor Argumento, em Cannes, em 2018, com “Três Faces”, três anos depois de ter conquistado o Urso de Ouro, em Berlim, por “Táxi” – filme realizado e protagonizado clandestinamente por Panahi, após ser proibido de filmar durante 20 anos.

O mais recente filme, “Ursos não há”, premiado em 2022 em Veneza, está em exibição nas salas de cinema portuguesas. Assim como duas obras de referência do realizador iraniano Abbas Kiarostami, no cinema Ideal, em Lisboa: “Onde fica a casa do meu amigo?” e “Trabalhos de casa”. Na Cinemateca Portuguesa, também se presta homenagem ao universo cinematográfico do Irão no ciclo “Tijolos e Espelhos – O Cinema iraniano revisitado” (1955-2015), cuja primeira parte é exibida este mês de fevereiro.

Há momentos em que ver um filme é um gesto solidário e que deve ir além da cinefilia.

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