Durante a campanha eleitoral, o meu feed do Facebook viu-se transformado num verdadeiro hino à arte de insultar. Uns mais eruditos (“alimária”, “cabotino”, “poltrão”), outros mais prosaicos (“ladrão”, “palhaço”, “totó”), houve insultos para todos os gostos e líderes partidários. Não se trata, evidentemente, de uma arte exclusiva do eleitorado português. O que motiva este artigo é, aliás, um conjunto de vitupérios proferidos contra uma política estrangeira – especificamente, contra Eva Glawischnig-Piesczek, ex-líder d’Os Verdes austríacos.

Em abril de 2016, um utilizador do Facebook partilhou uma notícia sobre as políticas de imigração do dito partido juntamente com um comentário em que apelidava a então deputada de “idiota corrupta”, “vil traidora da pátria” e membro de um “partido fascista”. Glawischnig-Piesczek entendia que o post devia ser removido à escala global, assim como qualquer afirmação idêntica ou semelhante. O Facebook discordava.

O caso chegou ao Tribunal de Justiça da UE (TJUE). A questão colocada ao Tribunal não foi a de saber se as declarações eram lícitas ou ilícitas. Essa é uma história diferente e, em qualquer caso, os tribunais austríacos já se haviam pronunciado no sentido da ilicitude. A dúvida era antes a seguinte: sendo as declarações inadmissíveis à luz do direito nacional, qual o alcance da obrigação de as remover que impende sobre plataformas como o Facebook?

Num autêntico atentado judicial à liberdade de expressão, o TJUE determinou que os tribunais dos Estados-membros podem obrigar o Facebook a remover, a nível mundial, posts considerados difamatórios nos respetivos ordenamentos, mas também a monitorizar a rede em busca de conteúdos de natureza semelhante.

A decisão assenta em dois erros fundamentais.

Primeiro, o Tribunal parece acreditar que tudo se resolve se o Facebook implementar filtros que detetem estes conteúdos de forma automatizada – uma ideia que revela uma notável falta de compreensão do estado da tecnologia e do género de operação intelectual que se exige nestes casos. A distinção entre o que é difamação e o que não o é está umbilicalmente ligada ao contexto em que as afirmações se inserem. Um algoritmo não é ainda (e não sabemos se alguma vez será) capaz de entender o significado contextual do discurso humano. Não é capaz de perceber, por exemplo, se a expressão “idiota corrupta” está a ser usada insultuosamente ou, pelo contrário, para criticar a declaração original. Em resultado, as duas declarações – o insulto e a crítica ao mesmo – acabarão provavelmente por ser removidas.

O segundo erro prende-se com a extensão territorial da obrigação em causa. Nesta espécie de casos, diferentes países atribuem diferentes pesos à liberdade de expressão no seu confronto com o direito à honra. Vilipendiações como as dirigidas à deputada austríaca, sobretudo quando feitas no quadro de um debate de interesse público, seriam certamente consideradas aceitáveis noutros países. Ora, com esta decisão do TJUE, a Hungria de Orbán, a Polónia do Lei & Justiça ou qualquer outro Estado-Membro da União passam a poder impor as suas ponderações ao resto do mundo.

É certo que a remoção global protege mais eficazmente a honra da pessoa visada do que uma obrigação com efeitos nacionais. Mas esse grau de proteção só raramente será necessário nestes casos. Um insulto a um político representa geralmente uma tomada de posição numa questão de interesse interno, pelo que a probabilidade de suscitar curiosidade em todo o mundo é reduzida. Uma ordem de alcance meramente nacional será, por isso, suficiente para assegurar um justo equilíbrio entre os interesses em jogo.

Esta é, pelas piores razões, uma decisão histórica para o futuro da Internet. Uma decisão cujos efeitos são ainda difíceis de prever, por dependerem da postura que vier a ser adotada pelos tribunais nacionais, mas que são potencialmente nefastos para a liberdade de expressão online e para as redes sociais enquanto ferramentas de engajamento político.

 

NOTA: O autor foi consultor do Governo Português no processo C-18/18, Glawischnig-Piesczek, junto do Tribunal de Justiça da UE. O presente artigo reflete apenas a sua opinião pessoal.