Jens Nygaard Knudsen, o dinamarquês que criou o boneco da Lego morreu em fevereiro deste ano. Por poucas semanas não viu um “clone” da sua icónica criação ser usado pela agência de notícias chinesa Xinhua num vídeo em que ridiculariza a resposta dos Estados Unidos à pandemia de Covid-19. Infelizmente, nunca iremos saber se Knudsen teria achado piada à sátira, ou se ficaria apenas pasmado com o insólito uso do boneco num confronto geopolítico sobre uma pandemia.

No vídeo, intitulado “Era uma vez um vírus”, um boneco que encarna um guerreiro chinês discute com outro que representa a Estátua da Liberdade. O objetivo é de contrastar a atitude responsável da China, que acredita que alertou o mundo a tempo, com as reações iniciais de Donald Trump, que classificou o vírus como uma simples gripe que iria desaparecer em abril.

O sketch não é nada subtil e até tem alguma piada, mas o sorriso desaparece rapidamente, ofuscado pelo absurdo da situação. Para começar, o facto de a China ter recorrido a este tipo de comunicação. A Xinhua é um megafone do Estado, portanto a mensagem é oficial e destina-se e consumo externo, pois foi transmitida através de redes sociais ocidentais banidas na China. É a infantilização oficial de vários temas: uma pandemia, as respostas drásticas e as relações entre os países.

A China não está, certamente, isenta de culpa em diversos aspetos desta pandemia. Demorou a detetar e a alertar, permitindo a propagação à escala mundial. Não terá sido, muito provavelmente, transparente na informação sobre infeções e mortes. No entanto, deve ser difícil encaixar as provocações de Trump, que acusou a China de ter criado o vírus para usar num “ataque’’ mais forte que o dos japoneses a Pearl Harbor. A forma como o presidente dos EUA expressa as acusações inspira a caricatura.

Pondo de lado essa infantilização, a última ronda de notas de culpa confirma que nem uma tragédia à escala global consegue esfriar a tensão entre as duas potências. Pelo contrário, só veio aumentar a tensão.

Mesmo no plano da ajuda, os dois países concorrem para oferecer equipamento e apoio financeiro aos países mais necessitados, especialmente em África. O prémio? Ganhar a guerra de propaganda para ser visto como o salvador, para depois colher frutos em forma de cooperação.

Um dos campos de batalha é o desenvolvimento das redes 5G. Os incentivos dos EUA para os países não usarem o equipamento da Huawei já se transformaram em ameaças pouco veladas. Por outro lado, a China usa a capacidade económica e tecnológica para persuadir países não-alinhados como a África do Sul.

O timing da mais recente guerra de palavras não é inocente, pois os dois países estão prestes a sentar-se à mesa para conversar sobre como o acordo comercial ‘fase um’ assinado em janeiro está a decorrer.

Não se pode descartar a pressão interna que os dois líderes sentem nesta guerra geopolítica. Numa altura em que Trump corre para a reeleição e Xi Jinping quer fazer esquecer o impacto da pandemia na China, os dois precisam de mostrar que continuam firmes na corrida para liderar no plano económico, tecnológico e militar.

Os duelos geopolíticos não são novidade, basta recordar a longa Guerra Fria. Infelizmente, hoje estamos suspensos por uma batalha entre um país que parece ser liderado por um cartoon e outro que desdenha a transparência mas que nos quer explicar as coisas via Lego.