A pateta e patética polémica em torno dos livros de exercícios lúdicos para crianças da Porto Editora não é um fenómeno desligado do contexto, uma idiotice isolada, um infeliz acidente de percurso. Nada disso. Bem pelo contrário, como demonstrou há dias, num programa vespertino de televisão – daqueles que fazem do ano inteiro uma silly season –, uma girafa. Sim, uma girafa. De peluche. Fofinha. Sorridente. Sobre essa girafa, perorava, indignada, uma doutora que teve a coragem de denunciar um crime evidente e um abuso despudorado – a girafa não é senão um ícone esclavagista do homo sapiens, que ao construir animais de brincadeira, permitindo a sua apropriação pelas crianças, reforça e perpetua o estereótipo da dominação do homem sobre os animais.

Trata-se, a bem dizer, de uma insidiosa estratégia – prosseguia a doutora – de neutralização, no plano da consciência infantil, dos direitos dos animais, evidenciando a facilidade com que os humanos podem e devem exercer o seu poder e manifestar o seu direito de propriedade sobre a natureza e todos os animais que lá habitam, pondo e dispondo dos recursos naturais, que estão lá apenas para serem colhidos, caçados e aprisionados. Eis a consequência lógica a retirar da girafa. Aquela mesmo, sorridente e fofinha. De peluche.

O discurso castrador e neutralizante que vai fazendo o seu caminho preocupa-me e deve preocupar todos os amantes da liberdade e da democracia. O alastramento do pensamento politicamente correcto (que se metamorfoseou já em pensamento cultural e socialmente anódino) ao discurso único oficial representa um condicionamento concreto, efectivo e violento de toda a opinião desalinhada ou apenas diferente, rapidamente imolada na fogueira pública – ostracizando, acusando, vilipendiando – com todos os que desconfiam, contestam ou destoam, transfigurando em dois tempos um debate de ideias e de pontos de vista num argumentário ad hominem, que, tomando a mensagem pelo mensageiro, visa enfraquecer aquela matando este.

Não sendo este um fenómeno exclusivamente português, é na conjuntura actual que ele aqui encontra terreno fértil, com o laborioso e denodado auxílio da comunicação social, que vai ganhando gosto pelo modus operandi (e pela matriz intelectual que lhe subjaz) que caracteriza o Comité Central do PCP. No episódio da Porto Editora, o ridículo do afã militantemente sanitizador foi magistralmente exposto e reduzido a pó pelo brilhantismo de Ricardo Araújo Pereira, num registo tão light e bem-disposto como demolidor. O que diriam o Bloco e o PCP se a rábula tivesse autoria de um comentador conotado com a direita? Aposto que viriam a terreiro, purificadores e apressados, defender a pobre e oprimida girafa.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.