Teria uns dez ou 12 anos quando apareceu lá por casa o livro “A fome no mundo para principiantesv”. Publicado pela Dom Quixote, era um verdadeiro precursor de um sítio da internet, apresentando-se em jeito de história gráfica, alternando uns desenhos a preto e branco com texto e muitos factos. A mensagem do livro era simples: a fome era um problema mundial de resolução urgente.

À época passeavam-se nas mesmas estantes uns livros encadernados com fotografias de países a que então chamávamos subdesenvolvidos. Neles viam-se imagens de multidões imersas no Ganges e de miúdos com barrigas e olhos gigantes, causados por carências alimentares. Enquanto isso, a crise humanitária causada pela fome na Etiópia inundava as notícias.

A ideia de erradicar a fome colheu entre os dirigentes mundiais e, com ajuda internacional, segundo dados da FAO, os países em desenvolvimento passaram de uma taxa de 30% de subnutrição nos anos 1970 para uma taxa de 12% em 2015.

Grandes produções alimentares e revoluções como a agricultura transgénica trataram de gerar o excedente capaz de alimentar o batalhão crescente da população mundial. A discussão transferiu-se para a subnutrição das populações, as carências de grupos de alimentos responsáveis por manifestações de raquitismo e outras doenças, nos mesmos locais onde antes a fome grassava.

Só que ao procurarmos resolver a fome, semeámos novos problemas. A agricultura intensiva corroeu os solos, tornando-os pobres em nutrientes e comprometendo a sustentabilidade do modelo, o uso de água foi excessivo e conflituou com as nossas outras necessidades primordiais e o abandono de produções locais pela sua baixa competitividade tornou-nos extremamente dependentes do exterior e hipotecou a prazo a nossa segurança alimentar.

À nova equação vieram ainda somar-se as alterações climáticas – fenómenos como inundações, temperaturas extremas e secas severas que destroem colheitas – e recentemente a pandemia de Covid-19, seguida pela guerra nos territórios considerados os celeiros europeus.

As Nações Unidas estimam que, em 2021, cerca de 828 milhões de pessoas passavam fome, um crescimento em 150 milhões face a 2019. A guerra em particular afetou de uma assentada a produção de cereais, de fertilizantes e os preços dos alimentos, causando sofrimento nas populações mais frágeis em África, na Ásia e Américas.

Não, no século XXI não erradicámos a fome. Numa época em que nos tomamos por civilizados, continuamos apenas a repetir erros dos períodos mais negros da história.