O tema dos preços de transferência suscita alguma resistência por parte dos agentes económicos. Provavelmente porque visam disciplinar, numa perspetiva fiscal, as transações entre partes relacionadas no que respeita às condições e preços aplicados nas mesmas. Quando existe uma situação de dependência jurídica ou económica, as partes envolvidas tendem a considerar que deveriam poder arbitrar as condições e preços mais convenientes. Logo, qualquer constrangimento imposto por terceiros, neste caso pelo Estado, é sempre encarado com relutância. Acresce que para os agentes económicos mais relevantes, a lei impõe obrigações declarativas adicionais, nomeadamente a preparação de documentação de suporte numa base anual em que aqueles são obrigados a detalhar o enquadramento económico das suas operações com partes relacionadas e a justificar as metodologias de preço adotadas. O objetivo final é que cada contribuinte, atendendo ao perfil de funções, riscos e ativos empregues no negócio, aufira uma rentabilidade semelhante à que seria alcançada caso as operações fossem realizadas entre partes não relacionadas. Trata-se de uma forte inversão do ónus da prova que noutras circunstâncias, em caso de litígio, se encontra do lado da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT). Ao longo do tempo, a essa obrigação declarativa principal, foram sendo adicionadas outras: reporte e detalhe das operações com partes relacionadas na declaração de informação empresarial simplificada (IES), relatório anual de acompanhamento dos Acordos Prévios sobre os Preços de Transferência (APPT), Declaração Financeira e Fiscal por País (CbCR), divulgação das operações com partes relacionadas aplicável a sociedades cotadas em bolsa (Lei nº 50/2020 de 25 de Agosto), reporte à AT das operações com partes relacionadas abrangidas pela denominada DAC6 e, no âmbito desta última reforma da legislação de preços de transferência, apresentação do Master File do Grupo (dossier principal). E, em breve, teremos o chamado CbCR Público (Diretiva UE 2021/2101, que deve ser transposta pelos Estados-membros da UE até 22 de junho de 2023).

Em novembro de 2021, a legislação de preços de transferência foi mais uma vez alterada. As alterações decorreram da aprovação das Portarias nº 267/2021 (P267/21) e nº 268/2021 (P268/21), ambas de 26/11. Em síntese, pode dizer-se que se tratou de uma reforma parcial da legislação de preços de transferência, essencialmente focalizada em aspetos de simplificação, uma vez que não se alterou a norma estrutural que rege esta área da fiscalidade (art.º 63º do Código do IRC), o regime de fundamentação mais exigente para a AT no caso de correções (nº 3º do art.º 77º da Lei Geral Tributária) nem o regime de contraordenações aplicáveis em caso de incumprimento previstas no Regime Geral das Infrações Tributárias. Estas duas últimas áreas mereciam uma revisão aprofundada no sentido de, por um lado, se estabelecer claramente que quando os estudos técnicos apresentados pelos contribuintes são recusados pela AT por motivos técnicos, fica esta obrigada a produzir um novo estudo com base nos critérios que entende adequados, não bastando o mero afastamento da parte sobre a qual existe desacordo, procedimento que invariavelmente descarateriza completamente a análise efetuada pelo contribuinte. Por outro lado, o regime contraordenacional deverá ser repensado com vista a proteger os contribuintes cumpridores, desencorajando fortemente o incumprimento das obrigações nesta área, na medida em que tal postura coloca os infratores numa situação de vantagem competitiva face aos cumpridores.

A alteração principal decorrente da P268/21 foi dirigida às empresas que são obrigadas a preparar e, eventualmente, remeter à AT a sua documentação de preços de transferência. Procedeu-se à atualização dos valores de referência que estavam em vigor há mais de 20 anos e que implicavam que empresas de pequena dimensão ficassem sujeitas a uma obrigação declarativa que poderia ser desproporcionada face a sua realidade económica. Portugal aumentou agora significativamente o valor mínimo de referência para este efeito, de três para 10 milhões de euros. Foi também incorporado na legislação nacional o conceito de dossier principal/dossier específico e a possibilidade de preparação por parte de agentes económicos de menor dimensão de um dossier simplificado. Também se integrou na legislação o resultado de orientações emitidas pela OCDE no âmbito do Projeto Base Erosion and Profit Shifting sobre intangíveis e reestruturações.

Mas será de realçar, pela sua importância no que respeita à credibilização dos processos de documentação de preços de transferência, a necessidade de emissão, por parte dos prestadores de serviços envolvidos na preparação de estudos técnicos, de uma declaração de responsabilidade. Portugal ainda não foi tão longe como outros países, que obrigam à “selagem digital” da documentação na data-limite prevista na legislação. Uma certa flexibilidade nesta área justifica-se, principalmente num contexto de agentes económicos que já estão sobrecarregados com uma miríade de obrigações declarativas. Outro aspeto que merece destaque tem a ver com a especificação que a AT poderá solicitar a comprovação da aplicação de condições e preços de mercado nas operações relacionadas, mesmo se a empresa não estiver obrigada, em função dos critérios previstos na legislação aplicável, a preparar documentação de preços de transferência. Uma empresa com um volume de proveitos de 10 milhões de euros e transações relacionadas de 500 mil euros, ficará obrigada a preparar a sua documentação, ao passo que outra, com um volume de proveitos de nove milhões de euros e transações relacionadas de oito milhões de euros ficaria dispensada de o fazer o que, obviamente, não é minimamente razoável. Esta medida incorpora uma lógica de “não fragmentação” que limita a utilidade dos agentes económicos operarem com diversas empresas (desnecessárias) com vista a poderem ficar isentas de escrutínio em matéria de preços de transferência.

Mas talvez a alteração mais relevante prevista na P268/21 tenha a ver com os procedimentos de ajustamentos de preços de transferência em caso de litígio com a AT. Prevê-se agora, por regra, o ajustamento por parte da AT para a mediana do intervalo interquartil de referência dos comparáveis. Ou seja, com vista a dirimir em que segmento deste intervalo a rentabilidade da empresa se situa (mais perto do 1º ou do 3º quartil), opta-se por uma regra salomónica, ou seja, pelo valor que se encontra exatamente no meio do conjunto de informações numéricas obtidas através da análise de comparáveis. Esta regra pode ser penalizante para alguns operadores económicos que operam em negócios de elevado volume, mas com margens (por exemplo, margem bruta) muito comprimidas. Poderá beneficiar outros que, operando em negócios de nicho ou de elevada exclusividade, auferem margens muito mais elevadas. Talvez se tenha ido longe de mais com esta alteração legislativa, que se percebe que resolve muitos problemas de incerteza, principalmente quando os casos chegam a tribunal e um juiz é chamado a tomar uma decisão sobre a correção efetuada pela AT para um determinado ponto do intervalo interquartil aplicável. A situação anterior, que obrigaria a um esforço de fundamentação muito maior por parte da AT, era claramente mais discricionária e, logo, mais facilmente passível de anulação por parte dos tribunais.

Uma nota crítica relativa à P268/21 decorre da falta de densificação sobre os fatores de comparabilidade. É uma área que cada vez mais gera mais litígios com a AT, nomeadamente no que respeita à comparabilidade geográfica e aos critérios aceitáveis para a definição de taxas de juro nas operações de financiamento e garantia.

No que concerne à P267/21, que vem regular a celebração de APPT, destaca-se uma ligeira simplificação das fases necessárias para tal celebração, a possibilidade de aplicação retroativa do acordo (sujeita a certas condições), o alargamento do prazo máximo de duração de 3 para 4 anos e uma redução das taxas cobradas pela AT no caso de serem suportadas por sujeitos passivos classificados como micro, pequena ou média empresa.