O recente relatório da Comissão Independente (CI) para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja chocou toda a sociedade ao trazer para a luz do dia uma realidade que poderá ser apenas a ponta de um icebergue.

Só às mãos de figuras da Igreja estão em causa pelo menos 4815 vítimas, admitindo-se que possam ser “muito mais do que isso”. Este é, talvez, um dos casos de maior amplitude conhecidos em Portugal, depois do caso “Casa Pia”, e que vem lançar um novo alerta sobre o tema e um debate que não pode deixar de passar por mudanças que contribuam para uma maior proteção das vítimas.

A maioria dos casos identificados prescreveram fruto do silêncio de décadas e de uma vergonhosa ocultação de casos. Mas nem todos os casos prescreveram e a par disso, pelo menos 100 abusadores continuam em funções na Igreja.

O abuso sexual de menores constitui uma problemática mundial cruel e de contornos trágicos para as vítimas e suas famílias, constituindo uma séria violação dos direitos humanos de crianças e jovens, tal como decorre da Declaração Universal ou da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Estima-se que 3 em cada 4 crianças – ou seja 300 milhões de crianças em todo o mundo – entre os 2 e os 4 anos de idade sofrem regularmente castigos físicos e/ou violência psicológica nas mãos dos pais e cuidadores, e 1 em cada 5 mulheres e 1 em cada 13 homens relatam ter sido abusados sexualmente entre os 10 e os 17 anos de idade.

Uma maior consciencialização, a mudança de mentalidades, a interiorização da gravidade e os factos associados ao crime de abuso de sexual de menores contam-se entre os principais fatores que têm contribuído para o aumento das denúncias deste tipo de crime, só tornado público em 2007 à luz do direito penal no nosso país.

Mas apesar dos avanços, os recentes casos que envolvem a Igreja vêm comprovar que os casos podem muito bem constituir parte de uma realidade em que o abuso sexual de menores é ainda vastamente silenciado. A recente pandemia, que levou a longos períodos de confinamento e ao encerramento de escolas em todo o mundo, os conflitos armados ou o impacto das crises económicas no agravamento da pobreza constituem agravantes da situação de vulnerabilidade em que muitas crianças e jovens se encontram.

Se por um lado urge mudar a lei, no que respeita ao alargamento dos prazos de prescrição, tendo em conta a idade das vítimas menores, a dificuldade de encontrarem canais de denúncia e/ou de verbalizar o que sofreram, algo já proposto em legislaturas anteriores e que foi rejeitado com os votos contra do PS, PSD, PCP, PEV e a abstenção do BE, por outro é necessária a criação de um mecanismo de reparação indemnizatória das vítimas. E diga-se, também, que quanto à reparação das vítimas, não se ouviu uma palavra da Igreja!

Quebrado o silêncio, pedir perdão não basta. É preciso que a justiça faça o seu caminho em relação ao que não prescreveu, reparando e garantindo o acompanhamento das vítimas, tal como é necessário que os agressores não permaneçam impunes, protegidos sob a égide e o manto da Igreja.