A crise gerada na monarquia britânica pelo duque de Sussex mereceu honras de debate um pouco por todo o mundo. Mesmo na centenária república portuguesa, o assunto foi discutido, à esquerda e à direita, extravasando momentaneamente as páginas da imprensa cor-de-rosa a que está habitualmente confinado. Tal debate tem pleno sentido, pois a monarquia, mesmo que muito diminuída nas suas competências políticas, não é uma mera relíquia ou atracção turística, mas a forma de chefia de Estado vigente em diversos países, entre os quais se contam algumas das mais antigas e sólidas democracias do mundo.

O comportamento do filho mais novo do príncipe de Gales é merecedor de reflexão, na medida em que nos interpela sobre a origem da legitimidade da monarquia na actualidade. Postas definitivamente em causa pela contemporaneidade as fontes tradicionais de legitimação da realeza – a origem divina do poder e a ordem social tradicional –, os príncipes ensaiaram novas formas de justificar o seu direito a ocupar um lugar herdado, assentando-o na exemplaridade da conduta e na ética de serviço público.

A rainha Vitória, quinta avó de Harry, intuiu esta necessidade, assimilando a ética burguesa, que então se impunha como padrão de virtude, ao adoptar a imagem de uma monarquia sóbria, austera e devotada aos valores da família, a que aderiu com fervor militante, chegando a exortar ao editor do “The Times” a que “frequentemente salientasse” nos seus editoriais “o imenso perigo e o mal que a lamentável frivolidade e leviandade dos vícios e estilos de vida das classes altas” causavam no corpo social e, por contágio, na reputação da cúpula dessas classes, ou seja, na instituição que zelosamente chefiava.

O duque de Sussex escolheu ignorar os ensinamentos da sua antepassada, mostrando-se inadaptado aos deveres que o nascimento lhe impôs, sendo várias as circunstâncias em que causou embaraços à Casa Real.

Contrariamente à maioria dos sucessores da vetusta soberana que deu nome a uma era, que seguiram o seu exemplo, Harry optou pelo comportamento rebelde de Eduardo VIII que, tal como ele, se desviou do caminho estreito que os príncipes estão fadados a percorrer. Não apenas porque o duque de Windsor teve igualmente uma vida atribulada antes de ascender ao trono, como, ao sobrepôr o seu interesse particular ao interesse público, renunciou, tal como o duque de Sussex agora renuncia – em circunstâncias que apresentam uma irónica similitude – aos deveres a que estava obrigado.

Enquanto instituição que se propôs servir o Estado e os súbditos pelo exemplo, a monarquia impôs aos seus membros o penhor da individualidade, sacrifício de monta numa era de triunfo da escolha como critério único de legitimação dos actos, mas ainda hoje necessário, pois, paradoxalmente, quando os príncipes imitam o modo de vida do homem comum, são por isso criticados. Aparentemente, a opinião pública quer que estes constituam uma espécie de reserva de valores que, não seguindo no seu quotidiano, assume ainda como ideal, não lhes consentindo que se tornem demasiado parecidos consigo.

O destino dos príncipes tem os seus escolhos, decerto, como todos os destinos afinal, embora esteja longe de ser o menos favorável. Como escrevia o conterrâneo de Harry, William Beckford, nos anos finais do Antigo Regime, acerca dos filhos da rainha D. Maria I, “conquanto, individualmente, eles [os príncipes] possam não gostar deste severo regime, pessoas de tão elevada hierarquia, como estas, deviam ter a bondade de se lembrar do fim para que são adoradas” e para tal pagas “liberalmente (..) pelo tributo do povo”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.