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Alexandria Ocasio-Cortez: A ressurreição do “sonho americano” na versão socialista de uma jovem latina

Há cerca de um ano trabalhava ao balcão de um bar e agora está a caminho do Congresso dos EUA, após uma surpreendente vitória nas primárias do Partido Democrata em Queens (Nova Iorque), contra um veterano que tinha 10 reeleições consecutivas e um orçamento mais de 10 vezes superior. Jovem latina de 28 anos é uma estrela ascendente na política norte-americana.
24 Julho 2018, 08h48

“Não é suposto que mulheres como eu se candidatem a cargos políticos. Não nasci numa família rica ou poderosa. Mãe de Porto Rico, pai de South Bronx. Nasci num sítio onde o código postal determina o vosso destino. O meu nome é Alexandria Ocasio-Cortez. Sou uma educadora e organizadora, uma nova-iorquina de classe trabalhadora. Eu trabalhei com mães grávidas, servi às mesas, dei aulas, e ir para a política não estava no plano. Mas após 20 anos da mesma representação, nós temos que perguntar: Para quem é que Nova Iorque tem estado a mudar? Todos os dias torna-se mais difícil para as famílias de trabalhadores, como a minha, sobreviverem. A renda da casa fica mais cara, o sistema de cuidados de saúde cobre menos e o nosso rendimento mantém-se igual. É evidente que estas mudanças não foram para nós. E nós merecemos alguém que cuide de nós. É tempo de lutar por uma Nova Iorque que as famílias de trabalhadores possam pagar. É por isso que estou a concorrer ao Congresso”, explicou Alexandria Ocasio-Cortez, no vídeo de lançamento da sua candidatura às eleições primárias do Partido Democrata em Queens (Nova Iorque), no âmbito das eleições para a Câmara dos Representantes (uma das câmaras do Congresso dos EUA, a par do Senado).

O vídeo foi lançado no dia 30 de maio e tornou-se “viral” nas redes sociais, catapultando a jovem ativista latina, de origem porto-riquenha e com apenas 28 anos de idade, para uma surpreendente vitória nas eleições primárias de Queens, realizadas no dia 26 de junho. À partida, Ocasio-Cortez, que há cerca de um ano trabalhava ao balcão de um bar em Manhattan, parecia não ter hipóteses de derrotar o adversário Joe Crowley, veterano democrata com 56 anos e membro da Câmara dos Representantes desde 1999, na sequência de 10 vitórias eleitorais consecutivas. Não apenas pelo estatuto e influência na cúpula dirigente do Partido Democrata, mas também por algo mais tangível como o dinheiro: Crowley gastou 3,3 milhões de dólares na sua campanha, ao passo que Ocasio-Cortez não foi além de 300 mil dólares. No entanto, contra todas as expectativas, a jovem outsider obteve 57,5% dos votos e será a candidata do Partido Democrata nas eleições para a Câmara dos Representantes, pelo 14º Distrito Congressional de Nova Iorque, agendadas para o dia 6 de novembro.

 

 

“Esta corrida é acerca de pessoas versus dinheiro. Nós temos pessoas, eles têm dinheiro. É o tempo de reconhecermos que nem todos os democratas são iguais. Que um democrata que recebe dinheiro, lucros ou casas hipotecadas de empresas, não vive aqui, não matricula os filhos nas nossas escolas, não bebe a nossa água nem respira o nosso ar, não pode representar-nos. Do que o Bronx e Queens necessitam é de Medicare para todos, ensino superior sem propinas, garantia federal de emprego e reforma da justiça criminal. Nós podemos fazê-lo agora. Não são precisos 100 anos para fazer isto, é preciso ter coragem política. Uma Nova Iorque para os muitos é possível. É o tempo para um de nós”, defendeu Ocasio-Cortez, no segmento final do mesmo vídeo. Ou seja, uma mensagem claramente direcionada para o interior do Partido Democrata, mais especificamente para o seu adversário nas primárias, Crowley, como que replicando o debate ideológico entre Hillary Clinton e Bernie Sanders, nas primárias dos democratas para as eleições presidenciais de 2016.

Não por acaso, a nova estrela ascendente da política norte-americana participou na campanha eleitoral de Sanders e, tal como o veterano senador de Vermont, assume-se como uma “socialista”, algo que não deixa ainda de ser uma excentricidade neste país que na década de 50 se dedicou a uma “caça às bruxas” comunistas, impulsionada pelo senador republicano Joseph McCarthy. Mas o 14º Distrito Congressional de Nova Iorque é um território em que predomina o Partido Democrata (Crowley foi reeleito com 74,8% dos votos em 2016, Hillary Clinton obteve 77% na corrida presidencial do mesmo ano e Barack Obama arrecadou 76% em 2008 e 81% em 2012), daí a grande probabilidade de Ocasio-Cortez vir a ser eleita para a Câmara dos Representantes, derrotando o candidato do Partido Republicano e tornando-se assim a mulher mais jovem de sempre a conquistar um assento no Congresso dos EUA.

 

 

Nascida no multirracial bairro do Bronx, membro dos Democratic Socialists of America (a maior organização socialista dos EUA) e dos Bronx Progressives (grupo de políticos e autarcas liberais), entre outros movimentos grassroots (baseados na sociedade civil e com uma lógica de implantação local e sem hierarquização vertical) que a apoiaram na campanha (nomeadamente os Justice Democrats e o Brand New Congress, ambos de cariz progressista), Ocasio-Cortez foi apanhada de surpresa pelos resultados eleitorais na noite de 26 de junho. Tinha acabado de vencer Crowley, um congressista com 10 reeleições consecutivas e um orçamento de campanha mais de 10 vezes superior, além de ser apontado como putativo sucessor de Nancy Pelosi como líder dos democratas no Congresso. No dia seguinte, em entrevista à CBS, Ocasio-Cortez revelou que não estava a acompanhar o escrutínio dos resultados até ao momento em que chegou à sua sede de campanha. Daí a imensa, genuína surpresa. “Vimos nos ecrãs que estávamos à frente e fomos a correr para dentro da sala. E eu fui logo para a frente de um televisor, olhei e verifiquei exatamente quais eram os resultados. E foi tão chocante! Sentimo-nos tão bem durante todo o dia, mas ver o que essa sensação representava em número de votos foi incrível”, descreveu.

Política e ideologicamente, Ocasio-Cortez posiciona-se claramente à esquerda do Partido Democrata, tal como Sanders. Defende a extinção da agência Immigration and Customs Enforcement (um dos principais instrumentos da política anti-imigração promovida pelo Presidente Donald Trump), a abolição das propinas no ensino superior (e perdão das dívidas bancárias dos estudantes), a criação de um sistema de saúde universal (o Medicare for All, proposto por Sanders), a garantia de pleno emprego, o aumento do salário mínimo até um nível que cubra as necessidades básicas dos trabalhadores, o lançamento de um Green New Deal para combater as alterações climáticas, entre outras medidas progressistas. Não deixa de falar castelhano e, aliás, os seus cartazes são bilingues (em inglês e castelhano), salientando a origem porto-riquenha, mas o núcleo central da sua mensagem não consiste em “política de identidade”. Na senda de Sanders, com o qual, aliás, tem participado em várias ações políticas nas últimas semanas, Ocasio-Cortez fala para a classe média, para os trabalhadores, para os mais desfavorecidos. É sobretudo um discurso de classe social, não de “identidade” (raça, etnia, língua, género, etc.), embora não renegue de todo essa vertente.

 

O establishment do Partido Democrata

A analogia com a disputa entre Clinton e Sanders, que dividiu o Partido Democrata quase ao meio em 2016, parece ser incontornável. Pelo que a provável eleição de Ocasio-Cortez para o Congresso está a ser interpretada como um desafio para o Partido Democrata, uma força que o poderá impelir para a esquerda mais progressista que não conseguiu ir a votos contra Donald Trump e ficou com a sensação de que teria obtido um melhor resultado do que Clinton. E mais uma vez, o establishment do Partido Democrata reage contra essa força, desvalorizando o feito da jovem latina. Nancy Pelosi, líder dos democratas no Congresso, por exemplo, classificou a vitória de Ocasio-Cortez como um “fenómeno local”, sem dimensão nacional (ainda que esteja a dominar o noticiário político nos EUA desde há duas semanas).

Em recente entrevista a David Remnick, da revista “The New Yorker”, foi evidente o seu incómodo relativamente a essa “condescendência”. E também a sua auto-confiança e ambição. “Eu fui eleita através de uma plataforma super-idealista. As pessoas podem querer tirar-me isso, mas eu ganhei. Quando ouves que ‘ela apenas ganhou por razões demográficas, ou uma baixa afluência às urnas, ou por causa dos apoiantes brancos de Sanders’, talvez isso até tenha ajudado… Mas eu arrebatei esta corrida. Não deixei ninguém de fora. Eu dominei. E vou ficar com isso na minha posse”. Resta saber até onde conseguirá chegar com tamanho capital político.

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