[weglot_switcher]

Bagão Félix: “O espaço natural do CDS é incompatível com discursos radicais”

Em entrevista ao JE, o ex-ministro diz que a principal oposição à direcção de Francisco Rodrigues dos Santos não vem de outras forças políticas ou sociais, vem do seu grupo parlamentar. “Como é possível que, num partido com preocupantes riscos para a própria sobrevivência, não haja respaldo nos deputados eleitos? Visto de fora – que é o meu caso trata-se de um quase “haraquiri” político, que, ao que julgo, nem sequer tem que ver com qualquer tipo de fractura doutrinária”.
  • Cristina Bernardo
10 Fevereiro 2021, 07h50

António Bagão Félix tem uma longa carreira pública. Foi ministro com José Manuel Durão Barroso (da Segurança Social e do Trabalho), com Pedro Santana Lopes (das Finanças e Administração Pública) e secretário de Estado com Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral (primeiro-ministro interino), Francisco Pinto Balsemão e Aníbal Cavaco Silva.

Figura próxima do CDS, manteve sempre distanciamento partidário. Nunca se filiou e quis sempre manter o seu estatuto de ‘independente’, mesmo durante a liderança de Paulo Portas. É uma voz escutada na sociedade portuguesa e aceitou responder ao Jornal Económico no âmbito de um trabalho sobre os caminhos que se abrem ao CDS depois do polémico Conselho Nacional de domingo passado.

Desse trabalho, que será publicado na sexta-feira, na edição semanal, decidimos autonomizar esta entrevista.

As últimas sondagens conhecidas dizem que o CDS estará com intenções de voto perto do 1%. Nas últimas eleições teve 4.25% e só elegeu por isso cinco deputados. Em 2011, na sequência de um ciclo de crescimento com a segunda etapa de Paulo Portas como líder, tinha conseguido 11.7% dos votos e 24 deputados (e depois 18, em 2015, em listas conjuntas com o PSD).  Passou de 653.987 votos em 2011 para 216.448 em 2019. Como analisa este declínio eleitoral? Está preocupado quanto ao futuro do CDS enquanto partido com grupo parlamentar?

Ainda que seja habitual as sondagens subestimarem o valor do CDS, parece notória uma quebra preocupante. A entrada no Parlamento de dois partidas de direita, para os quais as mesmas sondagens evidenciam capacidade de
crescimento, estarão a causar perturbação e erosão em algum eleitorado do CDS.

Esses fenómenos novos são o Chega e a Iniciativa Liberal. Um com um discurso securitário e centrado no combate à corrupção e o outro afirmando a primazia, social e económica, do indivíduo face ao Estado. Apertado entre o PSD, por um lado, e pelo discurso da IL e do Chega, o que deve fazer o CDS para não perder espaço?

O espaço natural do CDS é o da democracia-cristã, incompatível com discursos radicais, por um lado, e discursos de primazia individualista e de mercado puro e duro, por outro lado. No meu entender, o CDS deve aprofundar o seu “território” fundacional e conciliar a substância das ideias com a acutilância e realismo das suas propostas.

Para isso, não se deve deixar “canibalizar” por excessos liberais ou sujeitar-se a oportunísticas “OPA’s políticas”, que transformariam o partido naquilo que nunca foi e o afastariam do seu eleitorado natural. O pior que pode acontecer a um partido é andar por águas turvas, acabando por – usando um plebeísmo – “não ser peixe, nem carne”.

O CDS poderia (e deveria) ser mais afirmativo na ideia do combate à corrupção?

Entendo que sim. É uma das principais chagas do nosso país, com consequências danosas na sociedade, na economia, no aparelho público e na ética dos negócios. A corrupção e o nepotismo exigem um combate sem tréguas, a montante e a jusante. O sistema de justiça tem de ser edificado tendo em conta esta realidade. O sistema fiscal cada vez mais esquizofrénico e confiscatório tem de ser alterado de modo a não estimular acções corruptivas e a favorecer a lógica da elisão fiscal e dos paraísos fiscais. Vivemos perigosos tempos de “politeísmos” em volta do deus-dinheiro.

Insistir na matriz humanista, cristã e de defesa da família é suficiente para continuar a garantir uma identidade diferenciadora e importância eleitoral ao partido?

Indiscutivelmente. Se assim não acontecer é porque não se é capaz de fazer chegar essa matriz às pessoas. Bem sei que os adversários do personalismo e da liberdade com responsabilidade são, nos dias de hoje, poderosíssimos. Emerge desmesuradamente a “ditadura” das novas idolatrias: o consumismo, o subjectivismo e o individualismo, enquanto continuamos a conviver com a indigência, a exploração, a relativização da vida, a solidão, a ilusão. Além disso, o CDS deve lutar contra afloramentos danosos de egoísmo geracional, deve combater o relativismo e atrofiamento éticos que fazem germinar a indiferença e igualizar moralmente meios e fins, e deve fugir à tentação da política que se faz numa estrita lógica do dia seguinte, determinada tacticamente pelas sondagens , “likes” e redes sociais do instantâneo.

Tendo por princípio estruturante a dignidade e a centralidade da pessoa, bem como a opção pela promoção e protecção dos mais fracos, não deve alinhar com dualismos socialmente maniqueístas de sociedade bipolarizada entre vencedores e perdedores, cidades e aldeias, litoral e interior, velhos e novos, ricos e pobres.

Na actual política, perde-se tempo demais nas querelas reais ou fabricadas dos pequenos acontecimentos, logo de seguida descartáveis. É tempo de enfrentar, com coragem, espírito público, lucidez, rigor e prestação de contas as questões verdadeiramente geracionais. Refiro-me entre outras às seguintes áreas: demografia, protecção social, produtividade, ambiente, política fiscal, dívida, poupança, sistema judicial, educação e formação, que, não raro, são hoje apenas consumidas em formas de neocorporativismos endógenos. É assim que vejo a identidade diferenciadora da democracia-cristã.

E, para isso, é necessário que o CDS se exprima através de políticas e propostas consistentes e conducentes ao bem-comum, tendo em conta que o Estado existe para servir a Sociedade e não o inverso. Importa encarar profundamente a reforma de um Estado demasiado grande para coisas pequenas e muito exíguo e fraco para as grandes questões de agora e do futuro.

A que outras áreas é que o discurso e o programa do CDS deveria dar importância?

Economicamente, o CDS deve defender uma economia de mercado, que não seja isenta de preocupações sociais, e que saiba melhorar a relação entre crescimento meramente económico e desenvolvimento humano e social.

Moralmente, o CDS deve centrar-se na defesa do personalismo, de raiz democrata-cristã e denunciar o primado dos interesses sobre os valores.  Socialmente, o CDS deve desenvolver os ensinamentos da doutrina social cristã,
na defesa (não “fatiada” por clientelas, mas integradamente) dos pobres, dos mais vulneráveis, dos que sofrem a solidão e a ignorância, dos jovens desiludidos e sem trabalho, pela aplicação da subsidiariedade social. Eticamente, deve aprofundar e “aggiornare” o que de bom tem a nossa sociedade e lutar contra a permissividade, a banalização dos comportamentos, “as pequenas e médias éticas”, a cultura de morte e do eugenismo científico e deve ser exemplar na defesa, sem constrangimentos, do direito à vida.

Estruturalmente, o CDS deve apresentar propostas que contribuam para uma melhor e mais célere administração da justiça, para uma educação com carácter e valores, para uma segurança eficaz e humanizada.

Não esqueçamos que o mercado cuida do sucesso, mas descura o insucesso. Enaltece o vencedor, mas ignora o perdedor. Não tem suficiente dimensão social. O Estado, por sua vez, continua a ser mais gastador de futuro do que
produtor desse mesmo futuro, não entende o mérito e igualiza a mediocridade que assim se torna regra. Favorece o gastador, mas desconsidera o poupador. Não tem suficiente dimensão económica.

Bem sei que não se trata de uma empresa fácil nos tempos actuais e tenho presente a injusta marginalização do CDS na maioria dos media. Em qualquer caso, a coerência é sempre vencedora, nem que demore mais tempo e exija fortaleza. O CDS tem de ser seguro nos seus princípios doutrinários perante a mera táctica conjuntural, o jogo de poderes, e a obsessão do “política e mediaticamente correcto”.

O CDS tem estado bem ao nível das propostas de política económica e financeira?

Apenas tenho retido algumas ideias e propostas aquando da discussão orçamental. Parecem-me muito aceitáveis, mas têm o “handicap” de ser casuísticas e aparecerem no meio de uma avalancha de alterações.

O CDS deve rejeitar qualquer entendimento futuro com o Chega mesmo que isso, depois de novas eleições, implique manter a esquerda no poder? Ou o governo dos Açores deveria ser o caminho a seguir?

Esta é uma questão para toda a direita, a começar no maior partido, o PSD. O partido Chega tem beneficiado, paradoxalmente, de ser quase exclusivamente a força política de oposição ao que se convencionou chamar o sistema, pois que o PCP e o BE foram “integrados” por via do canto de sereia da geringonça. Daí a transferência de votos entre estes partidos e o Chega.

Respondendo directamente à sua pergunta, com o Chega como ele é agora, creio que não é desejável um entendimento, mesmo que só parlamentar. E também acho que até às eleições muita água vai correr por baixo da ponte, mesmo à esquerda. Embora possa parecer pouco crível, esta situação favorece um CDS mais presente e forte, pois pode vir a ser um fiel da balança entre o PSD e o PS.  Não é demais recordar a história europeia do pós-guerra, em que houve profícuos entendimentos entre a democracia-cristã, a social-democracia e o socialismo democrático.

Apoia o acordo CDS/PSD para não haver qualquer coligação com o Chega nas próximas autárquicas de outubro?

O nível autárquico é diferente, menos ideologizado e mais pragmático. Pontualmente, tendo em vista a não dispersão de votos e a consideração concreta dos candidatos, é matéria que deve ser analisada.

Que avaliação faz da liderança de Francisco Rodrigues dos Santos?

Trata-se de um jovem que considero muito seguro nos valores e princípios que defende. Fala, com clareza e sem tiques de correcção política, de uma economia social de mercado, da ética pública, da defesa intransigente dos valores da Vida e da Família, da opção pelos mais vulneráveis, da equidade inter e intra geracional. Como jovem, o seu discurso é de esperança e de quase insurreição contra as correntes política e mediática dominantes e pretensamente tutelares.

Sem radicalismos estéreis, sem populismo inconsequente, com autenticidade e rectidão. Espero que saiba sempre escutar, com humildade, quem o pode ajudar, mesmo que através da diferença.

Como tem visto a ligação entre a direcção do partido e o grupo parlamentar?

Parece-me um caso insólito de estudo. Afinal a principal oposição à direcção de Francisco Rodrigues dos Santos não vem de outras forças políticas ou sociais, vem do seu grupo parlamentar. Como é possível que, num partido com preocupantes riscos para a própria sobrevivência, não haja respaldo nos deputados eleitos?

Visto de fora – que é o meu caso – trata-se de um quase “haraquiri” político, que, ao que julgo, nem sequer tem que ver com qualquer tipo de fractura doutrinária. É bom lembrar que os deputados, em geral, não são eleitos nominalmente, mas como fazendo parte de uma lista de um partido, que – goste-se ou não – tem uma liderança eleita pelos militantes. Acresce que essas dificuldades aumentam quando o líder do partido não está no parlamento (com isto não ponho em causa a deputada Cecília Meireles, que é a melhor parlamentar do CDS).

Como analisou as movimentações que terminaram no último Conselho Nacional? Era também apoiante da ideia de um congresso extraordinário lançado por Adolfo Mesquita Nunes?

Como independente, logo não filiado no CDS, não me pronuncio sobre os seus aspectos internos. Mas, como institucionalista que sou, acho que, salvo motivo de força maior, qualquer mandato legítimo em qualquer organização deve ser cumprido integralmente. No caso dos partidos em geral, parece-me inconsistente
querer “surfar” em sondagens, para se interromper um mandato.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.