“A deflação e a estagnação económica são os riscos dos nossos tempos”, Larry Summers, Ex-secretário do Tesouro dos EUA

A China tem sido, nas últimas três décadas, uma história de crescimento económico em sentido único, de grande desenvolvimento tecnológico e de elevado impacte social. A crescente capacidade, e voracidade, dos seus consumidores foi alimentando, durante anos, a procura por bens e serviços internacionais, e a economia global foi sendo impulsionada por um motor que aparenta ser, à partida, inesgotável. Contudo, as leituras dos últimos meses dão indícios relevantes de que pode existir areia na engrenagem.

O motor asiático do crescimento mundial está a falhar, e a China – peça central de uma versão da globalização que aumenta os lucros – tornou-se no derradeiro imprevisto num momento de extraordinária incerteza para a economia mundial.

A economia não está a acelerar o que era previsto depois de serem retiradas as restrições relacionadas com a Covid no princípio deste ano, e depara-se com um cenário preocupante de queda generalizada de preços, em conjunto com um mercado imobiliário que parece bastante fragilizado. Existem, por isso, fundamentos para recear um cenário de deflação, com impacte transversal a diversos sectores – e que traz uma série de questões sobre o futuro próximo da economia mundial.

As evidências de uma mudança relevante do comportamento da China acumularam-se nos últimos meses

O primeiro sinal de preocupação foi a divulgação dos números de atividade que deram conta de que a economia chinesa abrandou substancialmente durante a primavera, aniquilando, praticamente, as expectativas de uma forte recuperação proveniente da reabertura da China após levantamento das restrições.

No segundo trimestre do ano, as leituras evidenciaram um crescimento de 6,3% em termos homólogos. Mas este crescimento compara mal, se tivermos em consideração que, em 2022, este dado foi praticamente nulo nesse trimestre, devido ao encerramento da atividade na cidade de Xangai, a maior cidade chinesa. Ou seja, a recuperação é enganadora e pinta uma figura mais anémica da recuperação económica do país.

Um segundo sinal de aviso prende-se com os números relativos ao comércio internacional, que mostram uma deterioração relevante, com as exportações da China a diminuírem significativamente durante três meses consecutivos (14,5% em julho, 12,5% em junho e 7,5% em maio), enquanto as importações caíram durante cinco meses consecutivos, o que também indicia abrandamento na atividade e consumo dos agentes económicos.

Um terceiro sinal relevante está ligado à queda de preços dos bens e serviços. A fragilidade do consumo é uma realidade, e os dados da inflação no consumidor mostraram leituras em junho próximas de zero, quando comparadas, em termos homólogos, a junho de 2022, e negativas (-0,2%) quando comparadas com o mês de maio.

Nos preços ao produtor, a queda foi ainda mais acentuada (-5,4% face a junho de 2022), depois de também ter recuado no mês de maio (-4,6%). Estas notícias de descidas dos preços numa série de bens, desde alimentos a apartamentos, apontam para a possibilidade de a China poder estar próxima de um ciclo de deflação, com de quedas sustentadas nos preços como prenúncio de uma atividade comercial anémica.

Por último, a angústia no mercado imobiliário chinês , que acaba por ser uma intersecção entre finanças, construção e riqueza familiar, tem vindo a acentuar-se. Os preços da habitação continuam a cair nas cidades mais pequenas, declínio esse que se estendeu às grandes cidades em junho. Foi mais um golpe para as indústrias de desenvolvimento imobiliário e construção do país, que representam pelo menos um quarto da economia, e já foram abaladas por dezenas de incumprimentos em obrigações emitidas fora da China.

Por exemplo, a Country Garden, grande promotor imobiliário chinês, falhou o pagamento dos seus títulos e estimou perdas na ordem dos 7,6 mil milhões de dólares para a primeira metade do ano. Entretanto, dados recentes divulgados pelo Gabinete Nacional de Estatísticas da China mostraram que o seu índice de preços da habitação para 70 cidades caiu a uma taxa anual de 2,2% em junho, depois de ter sofrido uma erosão a uma taxa anual de apenas 0,2% em maio.

O impacte na China tem relevância e o mundo não deverá ficar imune…

Para as famílias e trabalhadores chineses, todos estes acontecimentos trouxeram problemas. O investimento também tem vindo a cair, condicionado pela crescente falta de confiança das empresas estrangeiras em investir mais dinheiro na China. Os rendimentos das famílias chinesas registaram uma diminuição acentuada durante a pandemia e continuam fracos. O desemprego entre os jovens dos 16 aos 24 anos, que tem sido particularmente agudo no último ano, atingiu 21,3% em junho, o nível mais elevado desde que a China começou a anunciar a estatística, em 2018.

Ora, o impacto deste abrandamento pode muito bem fazer-se sentir a nível global. O enfraquecimento da economia chinesa sinalizou uma diminuição da procura de bens importantes – desde a soja colhida no Brasil, à carne bovina produzida nos Estados Unidos, até aos bens de luxo fabricados em Itália. Isso significou menos apetite por petróleo, minerais e outros componentes da indústria.

De acordo com uma análise independente da BCA Research, especializada na maior economia asiática, na última década, a China terá representado cerca de 40% do valor do crescimento da economia global, quase o dobro dos EUA (22%) e cerca de quatro vezes mais que os países do euro (9%).

A materializar-se o pior cenário, as repercussões destes fatores serão, obviamente, impactantes no gigante asiático, podendo condicionar a recuperação da economia mundial e afetar a procura global e o comércio internacional – ou não fosse a China o maior consumidor mundial de matérias-primas –, contrariando as expectativas mais otimistas para este ano, que aguardavam um impulso mais forte por parte dos consumidores chineses.

Até onde pode ir o governo chinês para conter este ciclo?

O governo da China tem vindo a delinear alguns programas fiscais destinados a estimular os consumidores e, também, a levar as empresas a investir para contrariar a tendência deflacionista. Mas os detalhes têm sido pouco visíveis, deixando a impressão de que serão os governos regionais que irão ficar com o ónus dos estímulos. Recorde-se que os governos locais estão no centro das preocupações de endividamento, depois de décadas a contraírem financiamentos para a construção de estradas, pontes e parques industriais.

Na realidade, existe uma preocupação generalizada de que as autoridades chinesas estão hoje limitadas nas suas opções para revigorar a economia, dadas as dívidas crescentes, atualmente estimadas em cerca de 2,8 vezes o valor da produção nacional, um valor acima da dos EUA.

Bottoms’ up: a deflação não é um dado adquirido, mas pode moldar o futuro

Ainda é cedo para se poder dizer que a deflação na China veio para ficar. Existem indicadores que podem indiciar que esta tendência é apenas temporária. O crescimento económico é ténue, mas a produção continua a crescer, e um ritmo de crescimento do PIB em torno dos 5% continua em cima da mesa.

Por outro lado, preços mais baixos provenientes da China podem ajudar as economias que estejam a atravessar dificuldades relacionadas com a inflação, como é o caso da Europa. Contudo, este será, porventura, um dos maiores desafios com que a economia chinesa se deparou nos últimos anos. E numa conjuntura marcada por maiores obstáculos geopolíticos e barreiras comerciais, este contexto poderá moldar e condicionar economicamente os próximos anos – seja na Ásia, seja a nível global.