Uma das grandes transformações da vida pública é a tendência para uma certa crispação. Todos temos opiniões e crenças, e direito a tê-las. Mas a dificuldade em sequer tentar compreender as posições dos outros parece ser cada vez maior. Em parte, a conflitualidade pode até ser saudável. Não há democracia sem conflito. O problema é quando ele leva a intolerância, ignorância voluntária, incompreensão dos outros e impossibilidade de comunicação.

Já escrevi neste espaço sobre a forma como o mundo digital promove este acantonamento de cada um nas suas posições políticas e nos seus sistemas de crenças, promovendo uma espécie de isolamento cognitivo, quando descrevi aquilo a que chamei as ‘mónadas digitais’. Este texto é sobre algumas formas de tentar abordar estas situações.

Estratégias possíveis

Uma reflexão interessante e muito prática é a de Paul Boghossian e James Lindsay em “How to Have Impossible Conversations”. Estas podem acontecer quando nos cruzamos com alguém com respostas pré-concebidas para tudo, ou quando se está em diferentes lados de uma qualquer barricada.

Boghossian e Lindsay sugerem que, antes de qualquer diálogo, tornemos claros os nossos objetivos: será que queremos compreender o outro? Aprender? Descobrir a verdade sobre algo? Levar o outro a abandonar uma posição falsa, ou prejudicial para ele próprio?

Dependendo destes objetivos, diferentes táticas podem ser usadas, mas sublinhemos apenas algumas das mais básicas: ver-nos a nós próprios e aos outros como “parceiros numa conversa” e não como adversários (p. 27); aprender a ouvir mais e a falar menos – não interromper o outro, dar-lhe tempo para se explicar, fazê-lo sentir-se compreendido (pp. 39-43); não ‘pregar uma mensagem’ (pp. 44-48) até porque, se a postura inicial do outro para connosco é de animosidade, e se o objetivo for fazê-lo mudar de ideias, tal propósito será atingido de forma muito mais eficaz se simplesmente o ajudarmos nessa mudança.

As pessoas tendem a aderir muito mais facilmente a uma ideia ou a uma escolha se estiverem persuadidas que ela é da sua responsabilidade. Pelo contrário, é muito mais provável que a rejeitem se lhes parecer que foram manipulados.

Enviados especiais ao ‘outro mundo’

Em todo este processo é igualmente importante a empatia. Quando estamos perante casos de conflitos de outra extirpe, aqueles que envolvem guerras, perseguições ou inimizades históricas entre países ou comunidades, o diálogo torna-se ainda mais difícil. Mas isso não significa que seja, em todos os casos, impossível.

Um projeto muito interessante é o Guestbook Project, sediado em Boston e codirigido pelo filósofo irlandês Richard Kearney, que convida jovens de comunidades separadas por estas barricadas históricas a entrar em diálogo. Temos exemplos de israelitas e palestinianos, arménios e turcos, sérvios e croatas, entre muitos outros.

Aqui a tática é a da partilha de histórias. O ponto de partida é quase sempre o da desconfiança ou recusa de comunicação. Mas depois, nos casos de sucesso, algo desbloqueia a situação – por exemplo, o humor. A partir daí, cada um conta a história do seu próprio ponto de vista, uma história que muitas vezes reconhece a dificuldade na relação com o outro.

Depois, seguindo o modelo do Guestbook Project, dá-se o passo decisivo: ao compreenderem o ponto de vista do outro tendem a desenvolver empatia e, assim, a contar uma terceira história juntos, a história de uma reconciliação possível. Tudo isto é gravado em vídeos que são colocados online na página do projeto, e cujo propósito é servir de inspiração para reconciliações reais.

Um destes diálogos, intitulado “In peace, apart”, é literal nesta troca empática de lugares. Duas jovens estudantes da Irlanda do Norte, uma católica e outra protestante, trocam de uniforme e andam juntas pelas duas partes da cidade dividida de Derry, fazendo assim, cada uma delas, uma espécie de visita ao ‘outro mundo’ pelos olhos da outra.

Mudando de contexto, também Lee McIntyre, na experiência relatada em “Como falar com um negacionista”, se torna uma espécie de enviado especial ‘ao outro mundo’ quando vai à Convenção de 2018 do movimento terraplanista.

Filósofo da ciência tentando compreender as crenças estranhas do negacionismo da ciência, testa os limites destes diálogos difíceis, e acaba por perceber um pouco melhor como funciona a visão do mundo destas pessoas, incluindo as suas racionalizações, a base comunitária das suas crenças, e a incompreensão que têm da forma como a ciência funciona.

Responsabilidade individual e institucional

Nada nestes fenómenos é simples, e as nossas atitudes perante eles devem ser ponderadas. Deve-se normalizar todo o tipo de crenças e opções? Não é esse o caso, porque há um equilíbrio fino que se tem de traçar entre o pluralismo democrático e o respeito pela diversidade de opiniões, crenças e ‘formas de vida’ e, por outro lado, aquilo que, de um ponto de vista ético ou político, não podemos aceitar.

As opiniões e crenças que temos direito a ter são invioláveis, mas a forma como elas passam para discursos e ações têm consequências às quais é preciso estar atento. Uma pessoa pode ser cética em relação às vacinas, mas quando esse ceticismo é disseminado sob falsas bases em campanhas de desinformação e cria um risco de saúde pública, não o podemos aceitar, tal como não aceitamos discursos de ódio, racismo ou xenofobia.

Coisa diferente, no entanto, é tentar compreender o que leva as pessoas a esse tipo de crenças e atitudes, e como mitigá-las. Relembremos que tentar compreender uma crença ou um comportamento não significa justificá-lo.

Para análises muito mais desenvolvidas da maior parte destas questões, problemas e exemplos, permito-me remeter para o livro coletivo “Como Dialogar Com Quem Não Quer Ouvir: para lá da polarização e da desinformação”, disponibilizado recentemente online sob a forma de eBook em acesso livre, e em cuja organização participei, juntamente com os colegas Pedro Matos Pereira, Ana Sanchez e Mara de Sousa Freitas. O livro é uma iniciativa do Seminário de Jovens Cientistas da Academia das Ciências de Lisboa, e teve origem num ciclo de conferências (todas elas disponíveis no YouTube) com o mesmo título.

A publicação junta filósofos, cientistas (das ciências naturais e sociais), jornalistas e comunicadores de ciência. Nela, discute-se a complexa interligação entre polarização política, desinformação e confiança na ciência, analisando-se várias estratégias para se ter estes diálogos difíceis em que se tenta falar com quem parece não querer ouvir.

Uma das conclusões a tirar deste livro é que a abertura de espírito é uma virtude rara que deve ser cultivada. Começando em nós mesmos e nas nossas instituições. Não basta constatar que os outros parecem não querer ouvir. É também preciso escutar quem normalmente não é ouvido (como todos os afetados pelas múltiplas exclusões que afetam a nossa sociedade) e evitar posições de elitismo e arrogância. Saibamos ouvir, e talvez também consigamos dialogar.