1. Plebiscito pelo cesarismo

As eleições de janeiro deram uma maioria absoluta ao PS. Nunca é bom para a Assembleia da República ficar contida no papel protocolar de uma maioria que faz eco do que diz o governo e em que todos os outros, mesmo se somados, não passam de uma minoria. Desta maneira, a representação política resume-se a cada um representar o seu papel.

Uma representação performativa até serve à reiteração e clarificação das ideias – é sempre bom perceber o que cada um pensa –, mas é uma representação com menos capacidade de fiscalização da prática governativa e, na verdade, com nenhuma ou quase nenhuma capacidade negocial.

Numa Assembleia da República de maioria absoluta, a estabilidade é um a priori sem as virtudes do compromisso. No lugar vazio do encontro laborioso, ficam as proclamações, cada um a falar para os seus, com todo o tempo inutilizado para outros fins, no fundo, a mais confortável situação de inconsequência e irresponsabilidade para a extrema-direita fazer tremer as paredes do hemiciclo com o eco dos statement anti-regime, mas também nada anti-sistema.

Esta foi e não foi a vontade do povo. Em janeiro, fomos às urnas para eleições legislativas, mas, verdadeiramente, muito mais do que eleger representantes à Assembleia da República, assistimos ao plebiscito, determinado por ordem presidencial, sobre a entrega do poder a António Costa. A vontade do povo foi exercida sem dúvida, mas de forma tremenda e deliberadamente condicionada.

Era difícil encontrar exemplificação mais conseguida da teoria de Max Weber de que “o instrumento especificamente cesarista é o plebiscito” – a maioria absoluta desfez a geringonça, ou melhor, o tenso triunvirato político composto à esquerda, e assim consagrou-se António Costa como César do Portugal dos próximos anos. O parlamentarismo consequente rendeu-se plebiscitariamente por quatro anos. Não imagino que todo este raciocínio não tenha sido antecipado por Marcelo Rebelo de Sousa.

2. O fim do ciclo

Dificilmente os partidos à esquerda do PS poderiam ter evitado este desfecho cesarista. Pode ter havido erros de avaliação sobre os impactos eleitorais que a decisão de um chumbo de proposta de Orçamento do Estado traria. Mas, é justo dizer que quando se decide não se pode contar, entre os elementos que ajudam a formar uma vontade e a fundamentar uma decisão, o conhecimento do futuro, que depende de outros e das suas desinteligências, e que, em última análise, não se controla.

Além da teoria, também sondagens a apontar um empate técnico nas vésperas do dia das eleições e um líder do PSD que não soube ser claro e afastar qualquer perspectiva de partilha de poder com o Chega deram razões de monta para o eleitorado migrar toda a sua capacidade de voto útil para o PS. É um facto político interessante como Rui Rio não conseguiu atrair nenhum voto útil num contexto em que António Costa fazia apelos pouco convictos a uma maioria absoluta. Até o PAN ia sendo todo engolido sem que tivesse feito nada para isso.

Certo é que o encargo da geringonça era enorme para CDU e BE. O PS ser governo sozinho garantiu-lhe todos os louros nos sucessos, mas o alibi da geringonça na distribuição de responsabilidades pelos insucessos. Este desequilíbrio não era fácil: em vez de uma parte maior que beneficia partes menores, sucedeu o contrário. Coube ao BE e à CDU o ónus da continuidade da solução, pelo menos muito mais do que ao PS.

Por outro lado, BE e CDU estavam condenados a parecer-se cada vez mais. Na defesa da solução governativa e no trabalho político junto ao PS para continuar a justificá-la diante dos seus respetivos eleitorados, o espaço para as diferenças ia colapsando nas grandes linhas da agenda política. O balanço não tem, contudo, de ser negativo. Também os triunviratos romanos duraram poucos anos apenas e ainda assim fizeram história.

Com tudo o que significou em termos de desbloqueio de governação à esquerda e consequências de alívio social e restauração de confiança nacional, a geringonça foi uma solução que a história política contemporânea nacional guardará como iluminadora. Mas, as condições que suportaram o seu ciclo já não estavam presentes desde há um ano, pelo menos da mesma maneira. Por isso, mais vale encarar o fim da geringonça como um facto normal numa história em movimento.

3. Um novo ciclo para os partidos de esquerda

Virada a página, os partidos à esquerda do PS devem perceber-se libertados da lógica de utilidade à governação e, de novo, com condições para se afirmarem e diferenciarem.

No caso do BE, importava que se reencontrasse com a ideia condutora que levou à sua fundação em 1999: um bloco de diversidade e pluralidade de esquerdas, incluindo pequenos partidos que se reconhecem da acção anti-capitalista e activismos de causas minoritárias, num convívio plural que pressupõe a relatividade das convicções de cada parte.

Aliás, em grande medida, aquelas causas minoritárias desafiaram consensos sociais tácitos, provocando a sociedade portuguesa e o seu espaço público ao bom confronto com uma exigência de maior disponibilidade para o reconhecimento de alteridades, pondo termo a formas de agressão e de silêncio, e fazendo prevalecer valores de maior e mais alegre convivialidade.

O grande desafio do BE para os próximos quatro anos é regressar a esta ideia matriz de um bloco de movimentos e partidos que convivem ecologicamente, unidos em volta de uma vontade de interpretação de um mundo em profunda transformação. A transição digital, as mudanças climáticas, a automação da economia, exigem uns estados gerais abertos, com esta ou outra designação, em suma, um lugar de proposta e discussão de novas e atrevidas revoluções de ideias políticas, novos activismos, novas causas minoritárias.

A urgência histórica nos nossos dias já não é dissipar o veneno da austeridade, mas criar espaço político para voltar a interpretar o mundo, um espaço convidativo, que normalize relações e possibilidades de entendimentos com o PAN, o Livre, organizações políticas não partidárias, movimentos sociais. Em vez da acidez, o partido convicto, mas de sorriso aberto, à Miguel Portas.

Esta descrição de expectativas é muito diferente num partido como o PCP, cuja acção política está conceptual e historicamente vinculada ao marxismo-leninismo e aos seus pressupostos. Há, claro, muitos marxismos e, sobretudo, o do italiano Antonio Gramsci, ao “culturalizar” a luta de classes, confere a esta outra substância além das relações deterministas da economia política. Sem perder de vista o lado económico, é preciso disputar muito mais o “senso comum”, denunciar-lhe o conformismo, até o conservadorismo.

O grande entrave a mudanças de paradigmas que urgem não é apenas o dos “grandes interesses do capital”, mas de cultura de senso comum. Há, pois, caminho, mas que é também de mudança.

Mas, apesar das pontes possíveis e desejáveis, pode simplificar-se sem simplismo excessivo e dizer que há uma esquerda da teoria económica e há uma esquerda da teoria social, a primeira mais determinista a segunda mais plural, a primeira mais ligada à racionalidade moderna, a segunda mais ligada à relativização questionadora da modernidade.

PCP e BE são boas aproximações a estes dois polos, que se constituem, na verdade, como duas culturas políticas, ambas sérias e profundamente implicadas na emancipação. Ambas fazem falta, até na sua diferença. Infelizmente, nos últimos anos, talvez impelidos pela igual participação na geringonça, entre as duas forças políticas, aproximou-se mais o BE da natureza do PCP do que o inverso.

Digo infelizmente porque a transição da modernidade urge incluir no que há a trazer à discussão pressupostos centrais para o PCP – a centralidade do trabalho assalariado na vida económica e desta na visa social e cultural. Não deixo de notar que muito do voto de resistência no PCP é de nostalgia da cultura de modernidade, das suas convicções sólidas capazes de planear modos de organização, de acção e de sentido. É mais uma resistência intelectual do que material, com tudo o que há de irónico nesta afirmação.

Importaria um PCP um pouco mais parecido com o que era o BE antes de se parecer com o PCP, sem perder de vista as diferenças.

 4. O progressismo

Depois há o progressismo, com ambiguidades que devem ser expostas. Usando uma expressão dura, mas certeira, de Nancy Fraser, há um “neoliberalismo progressista” que passa por aceitável à esquerda, até passa por ser parcialmente de esquerda, mas que, realmente, é só mais uma forma de adaptação do capitalismo, que se aproxima e absorve causas emancipatórias para assim as neutralizar e garantir-se a sua continuidade.

Uma acção política feminista, anti-racista e ecológica têm de estar atentas e verificar se não se fecham sobre si mesmas fazendo prevalecer a sua causa progressista sobre a exploração ou as outras causas. E se, dessa maneira, não lavam as mãos de uma certa cumplicidade tomando a sua causa por superlativa.

A tese reversa também tem de ser criticada: a luta de classes não tem razões conceptuais nem históricas para se autorizar “enquadrar” as causas concretas onde a desigualdade, a discriminação e a violência social são sentidas. Mas, a crítica a esta não autoriza o escape do progressismo com pouca ou nenhuma luta de classes e que se conforma com a desigualdade, a exploração, o desmantelamento dos direitos laborais.

De todas as evocações de progresso, a pior é a de uma certa ocupação da política pela ciência, como se viesse substituir a luta de classes nos propósitos de enquadrar o que é da esfera da escolha e da liberdade sobre como vamos viver em sociedade. Se o negacionismo e a pseudo-ciência devem atemorizar-nos por porem no mesmo pé trabalho científico e crendices, de todo combatê-los deve legitimar pretensões pseudo-políticas da ciência.

Em suma, o ciclo da geringonça terminou definitivamente, mas outro se abre e é um em que as esquerdas, além do trabalho parlamentar de oposição que delas se espera, devem reconhecer-se libertas de constrangimentos passados para, nos próximos quatro anos, interpretarem o mundo, reconfigurarem-se e porem-se ao serviço de uma mudança de paradigma económico e de senso comum. Sem isso, estão aquém da acção política necessária para fazer frente à catástrofe ecológica, do planeta, da sociedade e das subjetividades.

 5. Sondagens e dia de reflexão

Há uma nota final a fazer sobre dois aspectos que mereceriam revisão na Lei Eleitoral. Na era digital, o dia de reflexão é um anacronismo inútil que devia ser suprimido. Fazia sentido num tempo em que as vozes que compareciam no espaço público estavam claramente identificadas e estavam estabelecidos os códigos e meios de expressão (jornais, rádio e TV).

Com redes sociais e a multidão de vozes sem código prévio acordado a exprimir-se politicamente, candidatos, apoiantes, simples eleitores, a presunção de reserva na véspera de eleições é inviável e ganha uma feição paternalista logo à partida problemática.

Se queremos mais respeito pelo processo eleitoral, e esta é a segunda nota, devemos exigir a regulação da publicitação de sondagens nas vésperas das eleições. Faria todo o sentido que ficassem à porta de todo o período de campanha eleitoral. Sabendo o impacto que têm sobre a decisão de voto, deve haver um escrúpulo formal no seu emprego.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.