Quando uma grande transformação tem lugar, o seu sentido e implicações só se vão revelando à medida que o tempo passa, e é frequente que nela se participe de forma mais ou menos inconsciente. Não vivemos como se vivia há 20 anos atrás, e grande parte da nossa experiência de interação social, acesso a informação ou entretenimento foi radicalmente alterada pela transformação digital.

No decurso deste processo perdeu-se uma das garantias essenciais antes dada como adquirida em sociedades democráticas, a do direito à privacidade, à medida que se naturalizou a mercadorização dos dados da nossa pegada digital. Com essa dinâmica esvaiu-se também boa parte do controlo que podemos reclamar neste contexto, sobretudo face ao enorme poder concentrado nas empresas que gerem esses dados, como a Meta ou a Alphabet, e às possibilidades de instrumentalização do nosso comportamento através de usos inapropriado dos dados.

A perceção sobre estes problemas foi gradualmente emergindo na opinião pública. Um ponto importante de viragem terá sido o escândalo associado à Cambridge Analytica e à forma como influenciou as eleições presidenciais americanas de 2016. Contudo, o livro que explicitou a lógica deste conjunto de fenómenos, dando-lhe uma designação e conceptualização próprias, foi The Age of Surveillance Capitalism de Shoshanna Zuboff.

O livro já foi publicado há mais de 4 anos, mas só agora o pude refletir. Tal tarefa é impossível de esgotar num par de páginas mas deixemos algumas indicações a seu propósito.

A vigilância: mais uma mutação do capitalismo

Zuboff define o capitalismo de vigilância como uma ordem económica que trata a experiência humana como material do qual extrai “mais-valia comportamental”. Uma parte essencial desta lógica é a predição do comportamento futuro, e mesmo a sua manipulação, para usos instrumentais. De acordo com a autora, neste tipo de prática surge uma nova forma de poder, o qual designa como “instrumentarismo”, o qual “instrumentaliza o comportamento com o propósito de modificação, predição, monetização e controlo” (p. 352).

Neste sistema, as pessoas tornam-se os meios para os fins comerciais de outrem (p. 94) e isto levanta um problema ético que vai para lá do simples facto de não recebermos uma compensação monetária pelos dados que fornecemos. Tal problema prende-se, a um nível fundamental, com a instrumentalização e a parcial ou total ignorância que a possibilita, dada a complexidade dos termos em causa bem como, nalguns casos, a dificuldade na recusa desses termos.

Se, até certo ponto, a história do capitalismo é marcada pela crescente expansão da esfera do mercado, mercadorizando coisas que antes não obedeciam a esta lógica (p. 98), então a fase do capitalismo de vigilância aplica esta lógica à experiência humana, através de um ato de “expropriação digital” (p. 99), através do qual extrai a mais-valia digital que transforma em lucro.

Por sua vez, tal lógica levanta problemas éticos a um segundo nível, o das consequências. Com efeito, Zuboff argumenta que na luta pelo futuro digital, que envolve o controlo das ameaças resultantes do capitalismo digital, estão em causa a condição humana e a democracia.

O sujeito exposto

Para explicar como foi possível chegar a esta situação Zuboff avança um conjunto de fatores (pp. 340-342). Entre eles contam-se o facto de não haver precedentes a este modelo de negócio (tudo o que se entendia, no início, era que era ‘inovador), a falta de regulação eficaz, os laços estreitos entre muitas destas empresas e o poder político americano, a dependência que estes serviços criam nos utilizadores, os clientes destes mercados de comportamento futuro, bem como os fatores de inclusão e identificação.

É claro que, hoje, muitas destas práticas são públicas e uma enorme parte dos utilizadores, mais ou menos conscientes delas, continua a ‘clicar’ em todos os consentimentos, a participar nas redes sociais e a aderir alegremente às inovações que vão surgindo, não muito preocupados com a utilização destes dados. E isso explica-se, pelo menos parcialmente, com fatores psicológicos. Aceita-se este facto como se ele fosse uma ‘regra do jogo’, em troca da comodidade dos ‘assistentes pessoais’, da ‘personalização’ dos serviços, da rapidez de acesso à informação e mesmo da participação social. Como nota Zuboff (p. 341), para muitas pessoas, estar fora do Facebook (ou de qualquer outra rede social do momento) significa “não existir”.

Por conseguinte, seja pelo ‘medo de ficar de fora’, pela admiração sentida pela ‘inovação’ ou simplesmente pela exploração do desejo de reconhecimento, os sujeitos expõem-se, o que denota uma notável alteração cultural em relação a décadas anteriores. A quantidade de informação voluntariamente partilhada, por exemplo pelos utilizadores de redes sociais, era um sonho inalcançável pelas polícias políticas dos regimes ditatoriais do passado. No entanto, aqui chegámos, e quem se autoexclui faz figura de exceção.

Jogar à apanhada com a regulação

Tal como acontece em tudo o que se prende com a introdução de inovação tecnológica em ritmo acelerado, também no domínio do capitalismo de vigilância a tarefa da regulação é difícil, sobretudo quando se tem em conta o otimismo tecnológico ambiente e a crença amoral de que tudo o pode ser feito será eventualmente feito (sem consideração pelas suas implicações éticas). Este ritmo significa que aquilo que funcionaria hoje para um determinado conjunto de práticas, pode já não funcionar amanhã.

Ainda assim, Zuboff acredita ser possível regular democraticamente o capitalismo de vigilância de forma a travar a instrumentalização, assegurar uma distribuição do controlo sobre a informação mais equilibrada e salvar a democracia face ao poder desmesurado destas empresas. É possível conceber uma sociedade digital diferente.

Bem ou mal, a União Europeia tem tentado enfrentar o problema da privacidade dos dados com o RGPD, e há quem veja na série de decisões judiciais e multas impostas na UE à Meta um sinal do declínio do capitalismo de vigilância. São exemplos a decisão de 13 de abril que impôs uma multa histórica de 1,2 mil milhões de euros por violação do RGPD e transferência de dados para os EUA e a decisão desta terça-feira do Tribunal de Justiça da União Europeia, que vem dar razão à autoridade da concorrência alemã e colocar barreiras à forma como os dados dos utilizadores são recolhidos por plataformas como Facebook, o WhatsApp e o Instagram de forma a produzir os anúncios personalizados.

Serão as notícias da morte do capitalismo de vigilância manifestamente exageradas? É provável, até porque as novas formas de ‘inteligência artificial generativa’ com certeza trarão novos desafios, ao mesmo tempo que novas soluções para estes problemas são aventadas (como a ‘cápsula’ pessoal de dados proposta por Tim Berners-Lee). Contudo, mantermo-nos vigilantes em relação à vigilância será talvez um importante primeiro passo para assegurar a proteção da nossa vivência digital.