O paralelismo entre a gestão de um país e a gestão de uma casa é algo que volta e meia aparece, normalmente associado à ideia de que não podemos viver acima das nossas possibilidades ou gastar o que não temos. Em setembro de 2015, Yanis Varoufakis, no programa Question Time da BBC, dirigindo-se a um membro da audiência, respondeu assim a esta comparação: “(…) na sua vida, você tem uma maravilhosa independência entre as suas despesas e o seu rendimento, portanto se reduzir as suas despesas o seu rendimento não é reduzido, mas se o país como um todo iniciar uma enorme vaga de poupança, o rendimento total do país irá diminuir (…)”.

Não querendo deixar a metáfora desalojada, pareceu-me interessante fazer o exercício de imaginar uma casa mais adequada para esse efeito. Inspirada numa ideia de Warren Mosler (página 18 deste pequeno livro), eis a casa da família Silva. Com o objectivo de incentivar os seus filhos a participarem mais nas tarefas domésticas, o casal Silva decidiu criar uns cupões que estes receberiam por cada uma dessas tarefas. Pôr a mesa, 2 cupões; levar o lixo, 3 cupões; fazer o jantar, 10 cupões (que passaria a uma multa de 5 cupões se ficasse intragável); fazer a cama, 1 cupão; etc… No final de cada semana, cada um dos filhos teria que pagar aos pais um determinado número de cupões. Caso não tivessem acumulado um número suficiente de cupões, vários castigos estavam previstos, desde uma semana sem computador até, para os mais reincidentes, ter de assistir ao programa “Negócios da Semana” durante um mês.

Inicialmente tudo correu como previsto, melhor até, uma vez que algumas das crianças arranjaram formas diferentes de obter os tão cobiçados cupões, o que melhorou a vida de toda a família. O Tiago, adepto da pastelaria, teve logo uma grande ideia. Todos os sábados passaria a fazer o bolo de chocolate preferido da família, vendendo depois fatias aos seus irmãos a troco de cupões e escapando-se assim às tarefas domésticas que tanto detestava. Inspirada pelo irmão, a Joana, que andava entusiasmada com as aulas de trabalhos manuais, decidiu começar a fazer brinquedos de madeira ao gosto dos irmãos, a quem depois alugava, para também se livrar de algumas tarefas domésticas. Os restantes irmãos não se importavam com as tarefas suplementares que tinham de efectuar para desfrutar dos bolos do Tiago e dos brinquedos da Joana, valiam bem a pena!

Outro desenvolvimento surgiu por sugestão do Ricardo, o mais novo. O Ricardo tinha muito medo de perder os cupões que ia amealhando e então propôs aos pais que estes os guardassem por ele, o que foi prontamente aceite e alargado aos restantes irmãos. A partir de então, o casal Silva teria um caderno onde registaria o número de cupões que cada uma das crianças lhes pedisse para guardar, ou seja quantos cupões deviam a cada um dos filhos.

Com o aproximar das férias grandes, a Joana e o Jorge, que tinham planeado fazer um interrail com os amigos, aperceberam-se de um problema. Com as tarefas definidas pelos pais e os pagamentos que todas as semanas tinham de fazer, era praticamente impossível acumularem uma quantidade suficiente de cupões que lhes permitisse dispensar as tarefas domésticas na altura do interrail… Depois de muitos protestos e negociações, lá se chegou a um acordo. Durante as férias, o número de tarefas disponíveis aumentaria e o pagamento semanal obrigatório baixaria, o que permitiria às crianças acumular cupões mais facilmente.

Terminadas as férias, o casal Silva, com tantos cupões acumulados pelos filhos, ficou preocupado, temendo que estes deixassem de ajudar nas tarefas domésticas. A solução encontrada foi, além de reduzir o número de tarefas disponíveis para o nível inicial, aumentar drasticamente o pagamento obrigatório até que o número de cupões acumulados pelos filhos voltasse aos níveis habituais.

Cada uma das crianças, habituada à segurança que lhe dava aquela reserva, tentou manter o seu nível de cupões intacto. Procuraram fazer o máximo de tarefas disponíveis, deixaram de comer bolo de chocolate do Tiago aos sábados e de brincar com os brinquedos feitos pela Joana, mas por mais que tentassem era impossível. O Tiago e a Joana rapidamente tiveram que voltar às tarefas domésticas que tanto detestavam, uma vez que já ninguém parecia interessado no que faziam. Foram tempos difíceis para as crianças, mas depois de muitos protestos, greves e castigos, o casal Silva lá cedeu aos pedidos dos filhos e voltou a recompensar mais tarefas e a baixar o pagamento semanal. Os bolos e os brinquedos estavam de volta!

A ideia dos cupões rapidamente chegou aos ouvidos de outros pais na vizinhança e não demorou muito até que fossem adoptados por quase todas as famílias do quarteirão. Certo dia, a Joana ouviu falar duns biscoitos deliciosos que uma vizinha da família Brito fazia. Porém, esta não tinha qualquer interesse nos cupões da família Silva. Decidida a provar a mencionada iguaria, a Joana pôs-se a pensar: se alguém da casa da vizinha estivesse interessado num dos seus brinquedos, ela poderia trocá-los por cupões da família Brito, o que lhe permitiria, depois, aceder aos tão desejados biscoitos.

Com o passar do tempo, este tipo de trocas tornou-se cada vez mais frequente. Os bolos do Tiago e os brinquedos da Joana tornaram-se tão cobiçados pela vizinhança que os cupões da família Silva eram aceites em quase todas as casas, servindo até como meio de pagamento entre vizinhos de outras famílias. Já ao vizinho do lado, filho único e de apenas cinco anos, era impossível que alguém aceitasse os seus cupões. Que uso poderiam dar àquele pedaço de papel?

Faltam episódios interessantes nesta história, como quando uma das crianças passou a gerir o caderno dos pais e descobriu como podia ganhar uns cupões com isso, emprestando cupões aos irmãos, ou quando todos os pais do bairro se reuniram e decidiram criar um cupão único para todas as famílias, que só poderiam ser feitos pelo senhor Mário para que nenhuma família abusasse e desse cabo do sistema. Fica a ideia… Obviamente que esta brincadeira está muito longe da realidade, mas creio que esta casa (ou bairro) é infinitamente mais indicada para as habituais comparações referidas no início do texto.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.