Numa altura em que os apoios estatais estão no centro da discussão pública, é necessário analisar alguns dos seus efeitos colaterais, nomeadamente as distorções que estes introduzem nos mercados.

Imaginemos um mercado concorrencial no qual várias empresas apresentam ofertas similares. Uma dessas empresas concluiu, há algum tempo, uma agora tão badalada transformação digital, mas também investiu em inovação e tecnologia, e encontra-se devidamente capitalizada. Esta empresa olha para esta crise com preocupação, mas também com alguma confiança, pois tem uma estrutura de custos e capacidade financeira que lhe permite estar tranquila para os próximos tempos e, assim, aproveitar a retoma da economia.

Outra empresa, a operar no mesmo mercado mas que recorre a métodos de gestão mais tradicionais, através de um maior número de recursos humanos em detrimento de novas tecnologias, enfrenta uma maior rigidez nos seus custos. Imaginemos ainda que nesta outra empresa os resultados dos anos anteriores foram quase nulos, ou ainda que a política de distribuição de dividendos decidida foi de retirada da maioria do cash flow, o que não lhe permitiu ter nenhuma almofada financeira.

Neste exemplo simplificado, a segunda empresa vai necessitar dos apoios que o Estado criou para manter a sua atividade, bem como os salários dos seus trabalhadores, mesmo que tenha decidido optar pelo lay-off simplificado atualmente em vigor. Os apoios financeiros disponibilizados pelo Estado visam apoiar estas empresas, pelo que o seu pedido de empréstimo seria enquadrado nas atuais linhas de apoio.

Porém, e a primeira empresa? Como esta empresa dispõe de uma almofada financeira, à luz das atuais regras de concessão de apoios de Estado, não deveria ser elegível para obter nenhum dos apoios de Estado, pois não está em dificuldades.

Ao discriminar as empresas que podem aceder às linhas de financiamento, o Estado acaba por gerar uma distorção no mercado, pois algumas empresas podem beneficiar dos atuais apoios, os quais estão a ser concedidos em condições muito vantajosas não só em termos de custos, mas também de garantias.

Esta distorção acaba por gerar um incentivo perverso, levando a que empresas que não necessitem destes apoios, acabem por se candidatar aos mesmos, e a um desvio dos apoios para uma finalidade distinta da que inicialmente tinham, que seria apoiar as empresas a manter os empregos e assim minimizar o impacto na economia.

Para diminuir esta distorção de mercado e, desta forma, eliminar o incentivo perverso, deveriam ser criadas medidas compensatórias para as empresas que não recorram a qualquer tipo de apoio estatal, como, por exemplo, a redução de custos dos financiamentos já em curso, a alteração das garantias prestadas, ou mesmo na forma de subsídios à exploração ou redução de impostos no futuro.

Para além disso, deveriam ser apoiadas outras formas de capitalização das empresas, como a criação de benefícios para estas e para os seus sócios ou acionistas, que capitalizem as empresas com recurso a capitais próprios, como, por exemplo, através de uma redução da tributação de impostos sobre os rendimentos de capital. Esta medida poderia ainda ser complementada com a revitalização do nosso moribundo mercado de capitais para também capitalizar as empresas por essa via, o que poderia ser feito pela redução da tributação de mais-valias.

Por fim, deveriam ser igualmente revistos os incentivos para o reinvestimento de lucros, já que também se trata de uma forma de capitalizar as empresas.

A grande dificuldade está em como conjugar todas estas medidas de forma a eliminar a distorção introduzida no mercado com as atuais linhas de financiamento, com vista a produzirem impactos simétricos no mercado, quer no caso das empresas recorrerem às presentes linhas de financiamento, caso obtenham financiamento via aumentos de capital ou suprimentos, quer porque simplesmente não necessitavam.

No final, mais que a redução dos incentivos perversos que distorcem o mercado, o objetivo será que as medidas de apoio aos financiamentos agora disponibilizados cheguem a um maior número de empresas, e que existam também mecanismos de incentivo a que sejam obtidos financiamentos por outras fontes para, assim, minimizar o impacto recessivo da presente crise.