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Jorge Silva Melo: “As pessoas têm medo de correr riscos”

Recordamos aqui uma entrevista de Jorge Silva Melo ao JE em setembro de 2017. Uma singela homenagem a quem fez muito e deixou um enorme legado. Ao cidadão, encenador, ator, cineasta, dramaturgo, tradutor. A uma voz crítica que fará falta. Morreu esta segunda-feira, dia 14 de março.
  • Cristina Bernardo, 2017
17 Março 2022, 15h00

Costuma dizer que cresceu num “bairro de explicações”. O que quer dizer com isso?

Ainda vivo, aliás! Desde os cinco anos que vivo num prédio na rua da Artilharia 1, e só muito mais tarde é que percebi que, a partir dos anos 30, quando foi construído, começou a receber vagas e vagas de pessoas fugidas à Alemanha nazi e vindas de França. No meu prédio vivia o chefe da comunidade israelita, o Sr. Mucznik, pai da Esther Mucznik. A pouco e pouco, fui-me apercebendo de que naquele bairro, ali perto das Amoreiras e também da sinagoga, havia muitos judeus como os Aarons, o Ruá, a belíssima atriz Lucia Amram… Enfim, era um sítio de estrangeiros e algumas senhoras que não conseguiam trabalho no Estado português, mas que sabiam línguas, davam explicações. E eram muitas!

Esse ambiente, de alguma forma cosmopolita, marcou a sua formação em criança?

Sim, porque me habituei a ver revistas e livros em línguas estrangeiras, a ouvir falar línguas que não conhecia, e até a experimentar comidas diferentes. E habituei-me a receber, às vezes por engano, na nossa caixa do correio – coisa de que só me apercebi mais tarde – envelopes com selos de Nova Iorque. Ou seja, correspondência dos vários ramos daquelas famílias espalhadas pelo mundo inteiro… Era um sítio realmente cosmopolita de pessoas que não estavam bem integradas na sociedade portuguesa, mas que iam fazendo uma vida, não direi marginal porque não eram marginais, mas à margem das leis portuguesas e mantendo uma espécie de utopia secretista.

E também era o bairro do liceu francês, que ainda era no Largo do Rato e que depois passou para a localização atual, e do Instituto Britânico. De certa maneira, desde muito novinho que fui fazendo parte desse universo, especialmente através da minha irmã, mais velha que eu 12 anos, que frequentava essas explicações e tertúlias em casa dos vizinhos.

Ela foi a sua mentora em termos culturais, é isso?

Sim, passei a dar-me com pessoas mais velhas através da minha irmã, que me levava a essas tertúlias, a concertos, ao teatro e cinema, a visitar museus. Na altura, ela pertencia ao cineclube católico, onde trabalhava o João Bénard [da Costa], o Pedro Tamen, o Nuno Bragança… Às terças-feiras, ela ia à sessão das 18h30 no Jardim Cinema, que já não existe, e trazia-me sempre os programas, que eu colecionava, mas que só li mais tarde.

Pensei que tivesse sido o seu pai a despertar o seu interesse pelo cinema, uma vez que tocava piano a acompanhar cinema mudo.

Foram os dois, de certa maneira. O meu pai mais ao nível do cinema popular, como os filmes de cowboys, os grandes melodramas – e apreciava muito a Barbara Stanwyck! –, enquanto a minha irmã era a referência para os filmes mais intelectuais, que eram os que estavam na moda nessa altura entre os jovens universitários católicos e ligados aos movimentos de independência das colónias. Foi este o meu caldo cultural. [sorriso]

Quando frequentou os Maristas foi suspenso três dias pelo teor de uma redação que escreveu. Mas o mais interessante foi a reação do seu pai, que lhe propôs passar esses dias a consumir cinema.

Devia ter uns 12 anos e escrevi sobre o Patrice Lumumba, um dirigente independentista de África, com certeza devido à minha irmã, que era muito próxima de alguns dirigentes dos movimentos africanos. Ora, eu estudava num liceu católico, onde recebia uma educação católica, obviamente, e fiz uma redação, suponho que muito ingénua, fazendo o elogio dos mártires e dando como exemplo a morte do Lumumba, que me tinha chocado imenso. Os padres não gostaram daquilo e decidiram suspender-me três dias. Não consigo compreender porquê! Podiam converter-me, dizer que era um disparate, mas não, puseram-me três dias de castigo.

Quando chego a casa, digo ao meu pai que tive três dias de suspensão. Ele perguntou porquê e eu disse que fiz um elogio do Lumumba. Respondeu: “Ah está bem. Toma lá dinheiro e vai a todas as sessões de cinema que puderes estes três dias”. E assim foi. Havia sessões à tarde e à noite e foi a primeira vez que fui sozinho ao cinema à noite. [sorriso] Mas como só tinha 12 anos, só podia ver filmes para a minha idade, que não eram muitos nessa altura.

Ou seja, o cinema entrou na sua vida muito antes do teatro. Aliás, tinha 15 anos quando começou a escrever sobre cinema.

Tinha uma crónica quinzenal no Diário de Lisboa Juvenil sobre os filmes que tinha visto. Depois, o João Bénard da Costa, que tinha sido meu professor no Liceu Camões, convidou-me, creio que no meu primeiro ano da faculdade, para escrever n’ “O Tempo e o Modo”. Era uma revista de grande prestígio, onde escreviam o Seixas Santos, o Alberto Vaz da Silva, o Nuno Bragança, o João Pais e o Bénard da Costa, e eu passei a ser o mais novo do grupo. Praticamente todos os meses escrevia uma crónica e era protegido – e corrigido – pelo João Bénard da Costa. [sorriso]

Houve também um concurso literário organizado pelo Mário Castrim. No ano em que concorreu, o Mariano Gago venceu na categoria poesia, o Pacheco Pereira no conto e o Jorge Silva Melo no ensaio. Mas foi novamente censurado.

Tive imensa sorte porque a censura não deixou que fosse publicado, por isso ninguém sabe por que razão ganhei o prémio. Devia ser um texto cheio de disparates e ter muita ingenuidade… [sorriso] Foi proibido e como o escrevi à máquina e não havia cópias, nunca saiu em lado nenhum. Deve ter ficado no arquivo da PIDE em Lisboa. Mas ganhar o prémio foi óptimo. Com esse dinheiro, sete contos e quinhentos, fui para Paris.

Quais eram os seus planos?

Ver cinema, ver cinema, ver cinema. [riso] Fiquei em Paris um mês e vi 154 filmes! Fiquei numa residência que arranjei através da Alliance Française e que ficava perto do Louvre, na rue Jean-Jacques Rousseau, que me permitia ir ao cinema a pé. Umas vezes à Cinemateca, outras às pequenas salas no Quartier Latin. Tinha tudo milimetricamente pensado. Todas as sessões! [sorriso]

Imagino que os tais 154 filmes tenham contribuído para a sua formação cinéfila e humana.
Acima de tudo humana, pois foi a primeira viagem que fiz sozinho. E o primeiríssimo filme que eu vi foi o “El Dorado”, do [Howard] Hawks. Todas aquelas ‘lições’ que aparecem no grande cinema do Hawks, por exemplo, como a bravura, a solidariedade, o companheirismo e a lealdade também eram lições de vida, de coragem e de como enfrentar a adversidade. E o último filme que vi foi o “Paisá” [Libertação] do Rossellini.

Tenho isso bem presente porque estava tristíssimo por ter de vir embora. Já não podia ver quatro filmes por dia nem continuar a organizar as minhas sessões. Ao mesmo tempo, com o mapa que eu tinha – na altura não havia GPS – para localizar os cinemas, acabei por conhecer Paris bastante bem. Aliás, ainda conheci o Quartier Latin no auge daquilo que foi. Agora já não é assim, claro. Enfim, conheci uma Paris que já não existe, mas é uma cidade de que gosto muito e continuo a ir lá muitas vezes.

A sua vida tem sido feita de regressos a Lisboa. Tem necessidade de regressar, de ter uma ‘âncora’?

Há uma coisa que já disse e que é verdade: ter pátria é ter culpa. Quando estou em Paris, em Roma ou em Londres, tanto me faz se eles são malcriados comigo ou o que quer que seja, mas quando estou em Lisboa sinto-me responsável. Acho que devia ter feito mais, trabalhado mais e sinto-me culpado pelo lixo nas ruas, pela falta de educação de um empregado de café, por exemplo. Se calhar é por isso que volto sempre, por orgulho. Sei que não é isso que vai resolver o problema, mas o meu princípio de vida é: “tudo o que eu sei é para servir os outros”. Ora, em França e na Alemanha já não sirvo ninguém, sabem mais do que eu. Mas achei que, em Portugal, o conhecimento que tinha acumulado – pelo privilégio de ter vivido em Berlim, Paris, Roma, Londres – podia servir a outras pessoas. Talvez seja um disparate!

Alguma vez pensou como teria sido a sua vida “se” tivesse ficado a viver em Paris, por exemplo?
Em Paris foi onde a minha vida profissional foi mais reconhecida. Fui ator durante oito anos e podia ter continuado essa carreira com algum prestígio.

O que o fez mudar de ideias?

Não gostei da vida de ator. Nada! É uma vida tão dependente dos outros, tão em suspenso do desejo dos outros. Tinha um amigo ator, o André Vilmes, que dizia: “Isto não é profissão para um homem de 40 anos, sou pai de filhos e os outros é que me dizem que camisa é que tenho de usar?! Ninguém diz a um médico, a um banqueiro que tem de usar esta camisa.” Há uma infantilização da profissão porque somos ‘atores-objeto’ para o desejo dos outros. Nessa altura ainda não havia telemóveis, só o atendedor de chamadas, e a dependência que os meus amigos atores tinham desse objeto era aflitiva.

Passavam o tempo a correr para casa para ver se algum realizador ou agente tinha telefonado a propor contrato de trabalho, porque, já se sabe, perder uma oferta de trabalho é tramado! E isso assustou-me. Não queria aquela vida e decidi vir para Lisboa ensinar jovens atores – como a Joana Bárcia e o Manuel Wiborg, que teriam uns 20 anos na altura – para tentar libertá-los da pressão que a minha geração teve. Organizem-se, não fiquem dependentes do chamamento de agentes, criem os vossos próprios projetos, as vossas pequenas empresas, estruturas. Dou-vos cama e roupa lavada, mas de vez em quando também têm de lavar a vossa roupa. Foi para isso que nasceu [a companhia] Artistas Unidos, para que não houvesse pessoas tão dependentes do desejo dos outros.

Tem dito em diversas ocasiões que já não tem interlocutores à altura para discutir, debater.
É muito difícil, sou muito mais velho. Quando comecei os Artistas Unidos tinha 50 anos e os atores com quem trabalhava tinham 25. Ou seja, havia 25 anos de diferença. Ainda era possível discutir. Agora tenho 70 anos e os atores 25, sou avô! É muito mais difícil levantar a voz a um avô do que a um ‘irmão mais velho/pai’. É muito mais difícil opor-se. Neste momento passo por duas coisas que detesto: ser velho e mestre. Tudo o que eu digo está bem, mesmo que não gostem!

Ninguém o contradiz, questiona?

Não, porque estão interessados em participar no ‘meu’ projeto e não no ‘nosso’ projeto. Nos Artistas Unidos havia um projeto que era, tanto quanto possível, ‘nosso’. Digamos que eu partilhava a 60%. Mas é impossível que me contrariem. É algo que já não terei. Também tem a ver com as vicissitudes com que os Artistas Unidos foram crescendo: perder casa, procurar casa… cria muito mais a noção de que sou chefe de um barco do que antes, quando estávamos n’A Capital [no Bairro Alto], em que o edifício era partilhado com o João Fiadeiro e a sua companhia de dança, a Solveig Nordlund e a sua produtora de cinema… A discussão era mais natural, o debate era mais fácil. Havia coabitação e empréstimo de intérpretes a outras criações. Havia criadores que se interessavam uns pelos outros.

Sente falta dessa partilha e dinâmica?

Imensa falta! Nunca mais foi possível criar aquela dinâmica de entreajuda, de estarmos a viver ao mesmo tempo vidas diferentes – e no mesmo espaço! Éramos centenas de pessoas e conseguíamos oferecer vários espetáculos em simultâneo. Era uma coisa rica de hipóteses! [sorriso] A estreia mundial de “Sonho de Outono”, do autor norueguês Jon Fosse, foi n’A Capital. Tem graça que nós conseguimos estar à frente do nosso tempo, apesar das más condições daquele barracão! [sorriso]

Atualmente, no Teatro da Politécnica, isso não é possível?

É mais difícil de fazer na Politécnica por causa de todas as condicionantes que uma sala muito pequenina tem. E o sítio não é muito bom. Pode parecer bom em termos de localização [Príncipe Real, em Lisboa], mas não é bom porque é recuado, não tem uma fachada para a rua. E, no teatro, não ter uma fachada para a rua é uma coisa estranha. Agora é uma zona muito chique, mas está diferente. No início tivemos muitas pessoas a pedir-nos informações. Fiquei muito contente e até pensei: ‘olha, vamos ter um teatro do bairro’! Pediam para receber o programa e percebemos que a morada era de pessoas que viviam ali na zona. A pouco e pouco essas pessoas foram desaparecendo, ou porque deixaram de lá viver ou porque morreram… Hoje quase não temos pessoas que moram ali perto.

Quer dizer que o público mudou muito?

A rua mudou muito e o público também. O que é engraçado é que agora temos uma mistura simpática de pessoas da minha idade e de pessoas da idade dos atores. Falta a população que tem 45, 55 anos, que está na idade mais ativa e que não vem [ao teatro]. Ou porque é difícil estacionar, ou porque não têm baby-sitter, ou porque moram longe. A verdade é que dos 40 aos 50 e tal é ‘um buraco’. Em contrapartida, quando fazemos digressões, acontece exatamente o contrário. Vamos a uma cidade do interior e 90% do público é composto por classes liberais: professores, médicos, advogados e arquitetos entre os 40 e os 55 anos, porque puderam deixar os filhos com os avós.

Os jovens não vão ver as peças porque estão na universidade em Lisboa, Coimbra, Porto ou Aveiro. Digamos que é aquela classe mais ou menos bem na vida entre os 40, 55, 60, que tem carro e se encontra com amigos para ir ao teatro e vai mantendo esse ritual. Costumo dizer que em Lisboa há um “donut”, ou seja, há um buraco no meio, enquanto fora de Lisboa temos uma “bola de Berlim” – o buraco está cheio! [riso]

A itinerância ainda faz parte do ADN dos Artistas Unidos?

É uma das coisas de que tenho pena, pois gostava de ir a vários sítios fora de Lisboa uma vez de dois em dois anos. Gostava de ver crescer os espetadores. “Estavas cá com 15 anos e viste-me e agora já tens 16 ou 17 e voltaste a ver-me neste teatro”. Gosto de rever os mesmos rostos, por isso tenho pena que não se consiga firmar protocolos mais eficazes com as diferentes câmaras, em que de dois em dois anos regressamos a determinados sítios.

Disse que não gosta de ser visto como um “has been” e garante que não está “acabado”, apesar de achar que o seu tempo de criação pode, eventualmente, ter chegado ao fim. Continua com garra para criar?

Nos últimos cinco anos, a mudança de gerações e a alteração de mentalidades foi muito forte em Portugal. Desde que estamos na Politécnica houve uma grande mudança de atitudes. Não pertenço à nova vaga, sou de facto um velhote e não me estou a sentir bem. Não no sentido de ter sido relegado ou ultrapassado, mas no sentido daquilo que está a ser proposto. Isso entristece-me… As pessoas têm medo de correr riscos, têm medo de escolher espetáculos que não foram testados.

Refere-se à lógica do efémero, ao facto de as peças estarem em cena períodos cada vez mais curtos?

Acho isso um insulto! Porque é fechar os espetáculos e a produção artística no ‘circo’ das estreias e mais nada. Parece que se faz teatro apenas para os pré-profissionais. São só os alunos que assistem. É o único público seguro, por isso mais vale não correr riscos e criar teatro para eles em vez de ter um espetáculo às moscas. Acho repelente! Mas isso tem a ver com o que falámos antes: o medo que as pessoas têm de escolher espetáculos que não foram testados antes. É a lógica do fechamento, de nos escondermos do olhar dos outros. Num teatro grande, gosto quando o pano sobe e vejo as pessoas mais díspares no público: velhos, novos, ricos, pobres, o que quer que seja – é a cidade que está ali!

Agora fazem-se espetáculos para os amigos, para umas 40, 50 pessoas e parecem-me quase todos iguais. Neste momento há um dogma e a parte artística parece-me muito pobre. Mas quem sou eu? Já pertenço àqueles que não compreendem, àqueles a quem não é dirigido o teatro. Tenho pena do lado artesanal do teatro, que é feito em ofício, em equipa, por muita gente de natureza diferente, e que está a ser esquecido pelas péssimas condições de produção em que as pessoas estão a trabalhar: ensaiam em salas muitos pequenas, sem nenhuma ideia de como é o fundo da cena, o espaço… nada. Trabalha-se em condições antiteatrais e, depois, três dias antes da estreia chega-se ao palco e faz-se o trivial, que é o ‘arroz de tomate’!

A cultura deve ser uma prioridade na vida das pessoas?

Acho que é uma prioridade as pessoas saberem como é que estão a viver. Mesmo com fome se canta, se dança… Há uma transformação do ser humano e da vida quotidiana que as artes têm permitido. São essenciais às pessoas como desafio. A durabilidade das coisas é essencial. É importante que a Gioconda ou a Vitória de Samotrácia estejam no Louvre. Não podem ser vistas apenas ao fim de semana. É importante que eu saiba que estão ali. Tal como é importante saber que as “Tentações” do Bosch estão no Museu de Arte Antiga, pois posso ir lá quando entender e não apenas quando há 400 macacos a vê-las! E conto com essa amizade.

O que me irrita é ter de ir a correr ver ‘isto ou aquilo’ num festival porque é chique. Ou como acontece com a circulação de ‘mercadorias’ naquilo a que ainda chamam livrarias. Os livros que se sucedem, que não sei o que são e que desaparecem três dias depois, que podem ser best-sellers ou não. Quantos terão sido vendidos? Quantos terão sido atirados para o lixo? Quantos terão sido lidos? Serviram para quê? A rapidez da circulação de livros é assustadora… Um livro que saiu há três meses já não se vê. E é isso que está a acontecer ao teatro, assistimos a uma ‘festivalização’ permanente!

Entrevista publicada originalmente no caderno de atualidade, cultura e lazer “Et Cetera”, do Jornal Económico, de 15 de setembro de 2017.

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