Uma lei de bases é descrita, na Wikipedia, como aquela “que define as linhas mestras da política pela qual se deve reger a legislação numa certa área de actividade”. Como tal, é natural que, por um lado, seja algo carregada de ideologia e, por outro, lhe falte uma certa objectividade, visto que carece de leis específicas que a complementem e apenas indica as linhas orientadoras que estas devem seguir.

No entanto, há vários níveis para quão abstractas podem/devem ser as indicações expressas nestas linhas mestras, e os dois packs de Lei de Bases aprovados nos últimos 15 dias espelham bem esta situação.

O Governo e respectivos parceiros congratularam-se, em duas ocasiões diferentes, pelos acordos referentes às Leis de Bases para, primeiro, a habitação e, mais recentemente, a saúde. Neste último caso, a nova legislação substitui a aprovada em 1990 e revista em 2002, enquanto que, no caso da habitação, vem criar linhas orientadoras para uma área onde estas não existiam (e, justiça seja feita, num assunto merecedor de tal).

Ora, em Portugal existe a tendência de se aprovar projectos e medidas sem grande consideração ou análise do seu impacto a fundo, numa ânsia de corresponder ao pedido pela execução, mas com pouca preocupação pela qualidade da resposta a esse pedido. E a habitação é um caso perfeito disso.

Ainda antes da aprovação da Lei de Bases, foi anunciado um programa de “arrendamento acessível”, que prevê uma isenção do IRS (ou IRC) a pagar pelos inquilinos, desde que a renda seja inferior em 20% aos preços de mercado. Em Lisboa, o tecto máximo de uma renda acessível para, por exemplo, um T0 é de 600 euros. Super acessível, portanto.

Não admira que a Associação dos Inquilinos Lisbonenses tenha menosprezado este programa, bem como a de Proprietários, que diz que, com os cálculos do Governo do que são os “preços médios de mercado”, se peça aos proprietários para, na realidade, arrendarem 30% abaixo do valor de mercado – isto para um benefício de 28%. É fazer as contas.

A esta maravilhosa acessibilidade garantida ao arrendamento juntam-se outras medidas como o novo contrato de habitação vitalício, que consegue a proeza de não servir a proprietários, inquilinos, nem bancos (só dificulta a vida de todos e fragiliza a posição dos dois primeiros); e a inclusão na lista de imóveis do Estado a reabilitar para arrendamento acessível de espaços como o Hospital Miguel Bombarda ou o Convento das Convertidas em Braga (um Imóvel de Interesse Público, barroco do séc. XVIII, certamente de adaptação facílima e nada custosa para habitação).

Ou ainda a (in)definição, em plena Lei de Bases, do que é uma habitação devoluta “injustificada e continuamente”, que sujeitará o proprietário a multas (e já cheios de sorte estamos nós, que ainda se chegou a falar em “requisição temporária” destes imóveis ou até mesmo expropriação, pela malta mais avessa à propriedade privada). É um caso típico de governação à portuguesa: perante um problema visível, a solução é remediar as manifestações desse mesmo problema, em vez de se analisar a raiz do mesmo e atacá-la.

E o supra-sumo desta falta de raciocínio legislativo na habitação vem da promessa do Fisco de perseguir, encontrar e cobrar aos proprietários que se aproveitem da estupidez dos benefícios fiscais sugeridos pelo PSD que, para supostamente promover os contratos de longa duração, concedem um benefício maior a quem fizer dois contratos de dois anos do que a quem fizer um de quatro anos. Genial.

Já na saúde, houve todo um alarido pelas PPP. Catarina Martins, na TVI, primeiro salientou que uma nova Lei de Bases só seria viável se não permitisse PPP; passados cinco minutos, o número de PPP na saúde era já irrisório, quando confrontada com os números de queixas no sector hospitalar. É esta incoerência que me confunde, independentemente de concordar ou não com o princípio da gestão pública: a importância relativa que se atribui à mesma situação, dependendo da perspectiva ou do jeito que possa dar para a construção de um argumento.

No final, e depois do finca-pé contra as PPP à esquerda e do “teatro” com o PSD, anunciou-se, com toda a pompa e satisfação, um documento omisso em relação ao assunto, com promessas de se decidir nos próximos meses. No fundo, o resultado acabou em conformidade com os costumes lusitanos: “logo se vê”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.