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Leo Varadkar: Médico com fronteiras

Decidiu encarar de frente o combate à Covid-19 e, para isso, regressou à sua primeira condição de médico. O mais novo primeiro-ministro da Irlanda, o primeiro de ascendência indiana e o primeiro assumidamente homossexual, está demissionário do lugar que ainda ocupa por causa da pandemia. Mas tem à sua frente um longo percurso político, mesmo se, ou principalmente se, viajar para Estrasburgo, onde o Partido Popular Europeu é cada vez mais a oposição de si próprio.
12 Abril 2020, 21h00

Uma vez por semana, um hospital da capital irlandesa, Dublin, tem num dos seus gabinetes um médico que faz a avaliação telefónica dos doentes em fase inicial de exposição à Covid-19, o que não seria nada de especial se Leo Varadkar, o referido médico, não fosse também, nas horas vagas, primeiro-ministro do país que é considerado um exemplo máximo de sucesso de combate à pandemia anterior: a do subprime.

“Muitos dos meus familiares e amigos estão a trabalhar nos serviços de saúde. Quis ajudar, ainda que de forma limitada”, disse, citado pela imprensa, há alguns dias, num exemplo para todos os efeitos surpreendente e eloquente sobre o caráter de um homem que pareceu ser durante meses um erro de casting num país que também é conhecido pelo confinamento da sua sociedade aos valores mais tradicionais ou mesmo, para muitos, retrógrados.

Taoiseach (não, não é uma derivação do taoismo, é mesmo primeiro-ministro em irlandês) e ministro da Defesa desde junho de 2017, Leo Varadkar tem, na frente política, um problema para resolver: no início de dezembro do ano passado, escapou por muito pouco a uma moção de censura lançada pela oposição social-democrata (um partido minúsculo, mas que vinculou 56 votos contra a moção, 53 a favor e 35 abstenções). Menos de um mês depois, no início de janeiro deste ano, e perante mais uma moção de censura, pediu a dissolução do parlamento e eleições antecipadas. Que, em fevereiro, não lhe correram bem: numa votação com a presença sem precedentes de eleitores, os republicanos do Fianna Fáil (conservador, nacionalista mas pró-Europa) ganharam com 37 lugares; o Sinn Féin (o ‘velho’ braço político do IRA), conquistou os mesmos 37 lugares, e o Fine Gael (ideologicamente semelhante ao primeiro), o partido de Varadkar, ficou em terceiro, com 35 lugares.

A grande novidade é que o Fianna Fáil (que perdeu oito lugares em relação a 2016) e o Fine Gael (que perdeu 12) eram, até onde a memória dos irlandeses pode chegar sem esforço, os dois partidos que dividiam o governo, numa alternância que parece tê-los saturado – dado que o Sinn Féin, durante muitos anos banido da cena política ‘legal’ – aumentou em 15 lugares a representação parlamentar. Só para complicar, o Partido Verde passou de três para 12 lugares, tornando uma eventual coligação entre os dois partidos tradicionais – e ideologicamente tão próximos – mais difícil, por ter de alcançar 81 votos (em 160 lugares) necessários para governar sem terem que recorrer a terceiros. Isto porque Mary Lou McDonald, líder do Sinn Féin, já disse que “vencemos as eleições, conquistámos o voto popular”, o que é verdade em termos de percentagem.

Leo Varadkar é desde 20 de fevereiro um primeiro-ministro demissionário e à espera que as crises passem: a da Covid-19 e a política. Nesta última, apesar de tudo mais simples que a primeira, ninguém se entende: há mais de um mês que os principais partidos (e os do meio da tabela, dada a proximidade entre os três maiores) estão em negociações que são absolutamente opacas – ora aceitam coligações com determinado partido, ora com outro, para mais tarde recusarem qualquer coligação e regressar tudo ao princípio. Ou outra coisa qualquer.

Talvez também para escapar a todo este alvoroço, Varadkar decidiu refugiar-se num solitário gabinete de hospital – regressando assim a uma função para a qual tem habilitações, como clínico geral, desde 2010, depois de ter frequentado o Trinity College de Dublin, onde concluiu Medicina em 2003. Por esta altura, o médico despertou para a política ativa, tendo-se inscrito no Fine Gael em 2004, depois de ter militado nas camadas jovens do partido. Em pouco tempo, ganhou um lugar de destaque: foi sucessivamente ministro dos Transportes, Turismo e Desporto de 2011 a 2014, ministro da Saúde de 2014 a 2016 e ministro da Proteção Social de 2016 a 2017, antes de assumir o lugar de primeiro-ministro (aos 38 anos). Foi o primeiro-ministro mais novo que a Irlanda alguma vez conheceu, acumulando vários outros primeiros lugares: foi o primeiro descendente de indianos (o pai é indiano nascido em Bombaim) a chegar à liderança do governo irlandês e o primeiro homossexual assumido a ocupar o cargo.

Como era de esperar, foi esta última caraterística que o lançou para baixo dos holofotes internacionais: numa entrevista a uma rádio em 18 de janeiro de 2015 (dia do seu 36.º aniversário), Varadkar revelou publicamente pela primeira vez ser homossexual: “Não é algo que me defina, não sou um político meio indiano, ou um médico político ou um político gay, é apenas parte de quem eu sou, não me define, é parte do meu ‘personagem’, suponho”. Pouco depois, era considerado pela imprensa como o irlandês mais conhecido no mundo ocidental, talvez com a concorrência próxima de Tony Ryan, co-fundador da Ryanair.

Essa circunstância acabou por ser um grande empecilho para os governos conservadores de Londres, que dirigiram o país para o Brexit. “É uma automutilação sem sentido”, chegou a dizer, para mais tarde afirmar o que todos (britânicos e responsáveis da União Europeia) andavam a fazer de conta que não viam: a decisão de colocar o backstop algures no mar da Irlanda (para que não haja fronteiras físicas com a britânica Irlanda do Norte, ou o norte da Irlanda, como os irlandeses preferem chamar-lhe) não tem como funcionar, não só porque é uma coisa estúpida, mas também porque não há tecnologia que sirva à decisão.

Com as leis do casamento entre pessoas do mesmo sexo – Varadkar vive com Matthew Barrett, médico no Hospital Universitário Mater Misericordiae – e da despenalização do aborto no currículo, ao primeiro-ministro demissionário da Irlanda é repetidamente atribuída a capacidade de ir longe na cena política europeia. A ver vamos.

E isso até pode não demorar muito tempo. Leo Varadkar foi, enquanto membro da juventude do Fine Gael, vice-presidente da Juventude do Partido Popular Europeu (YEPP), o que quer dizer que já debutou na Europa e que terá estabelecido as suas redes de contactos. Por outro lado, e como parece evidente, o PPE está a precisar de sangue novo, depois de nas eleições europeias de final de maio do ano passado ter tido resultados traumáticos. Aliás, o PPE vai de trauma em trauma até um lado qualquer que ninguém parece saber qual é: depois do trauma das eleições, foi confrontado com o trauma de ter no seu interior um número não despiciendo e em crescendo de deputados que acham que a Europa é um grande aborrecimento. Ou seja, o PPE arrisca-se, a continuar assim, a tornar-se o principal opositor de si próprio. Tudo isto tende a ficar ainda pior quando Angela Merkel, chanceler alemã e ‘alma’ do PPE na última década (pelo menos) decidir que está farta de aturar eleitores (o que sucederá em 2021).

O partido tem por isso caminho livre para jovens pró-europeus que ainda não tenham sido infetados pelo vírus da extrema-direita. Sentado no seu gabinete no Hospital de Dublin, Leo Varadkar não parece correr o risco de contrair essa pandemia.

Artigo publicado no Jornal Económico de 09-04-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor

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