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Livro: “A Viagem dos Inocentes”

Mark Twain descreve lugares e pessoas com elevada dose de humor, a par de críticas hilariantes e de observações sarcásticas que, hoje, são consideradas politicamente incorretas. Muito incorretas. Tudo razões para não prescindir desta leitura.
13 Maio 2023, 11h25

“(…) o meu relógio já não se mantém a par das horas. Desanimou e parou. Acho que foi muito inteligente da sua parte. Há uma enorme diferença horária entre Sebastopol e a costa do Pacífico. Quando aqui são seis da manhã, na Califórnia estamos mais ou menos a meio da semana.”

 

 

Eis o tom geral deste divertidíssimo relato de viagem de Mark Twain – cujo título completo é “A Viagem dos Inocentes, ou A Nova Rota dos Peregrinos”, contendo o relato da excursão recreativa do paquete a vapor Quaker City à Europa e à Terra Santa com descrições de países, nações, incidentes e aventuras, como pareceram ao autor” –, realizada em 1867, portanto, muito antes do acordo secreto de Sykes-Picot, em que França e o Império Britânico dividiram o Oriente Médio, já na expectativa da derrota dos Otomanos na Primeira Guerra Mundial, e a fundação do Estado de Israel, momento a que os palestinianos chamam Al-Nakba, a “catástrofe”, em 1948.

Partindo do cais de Wall Street, em Nova Iorque, a viagem incluía paragens em diversas cidades africanas e europeias – como Tânger, Marselha, Florença, Nápoles, Atenas ou Odessa – e, já no regresso, Alexandria. Na altura, décadas antes do turismo de massas e dos milhares de cruzeiros que enchem diariamente mares e oceanos por todo o mundo, esta era uma viagem verdadeiramente peregrina. Twain juntou-se ao grupo para fazer a cobertura para três jornais – o “Daily Alta California”, o “New York Tribune” e o “New York Herald”.

As descrições dos lugares e das pessoas estão recheadas de humor, de críticas hilariantes e de observações sarcásticas que, hoje, são consideradas politicamente incorretas. Muito incorretas. Ao ponto de a edição inglesa da Arcturus ter uma mensagem do editor em que afirma que a linguagem e opiniões de Twain podem não ser bem aceites nos dias de hoje e que delas não partilha de maneira nenhuma. Para o leitor menos sensível a estes novos ventos que sopram de Oeste, é uma verdadeira bênção.

Não esqueçamos que este é o autor dessa personagem memorável que é Tom Sawyer e do ainda mais extraordinário Huckleberry Finn – ambos banidos das bibliotecas dos EUA, numa daquelas lamentáveis decisões ditadas pelo cancelamento cultural vigente.

A edição portuguesa, da Tinta-da-China, talvez também pelas mesmas razões (mas, seguramente, pela forma como o autor descreve os açorianos durante a escala no arquipélago, primeira terra estrangeira cujo solo os viajantes pisaram), esteve para não existir.

Valeu-lhe a insistência de Mário Mesquita e o apoio da FLAD – Federação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Para que ninguém fique melindrado, acrescente-se que Mark Twain tinha por hábito maltratar tudo e todos, seja Paris – onde visitou brevemente a Exposição Universal, que trocou para assistir à revista às tropas de Napoleão III e do sultão do Império Otomano, Abdul Aziz, de visita pela Europa –, seja a própria cidade de Jerusalém, com todo o excesso de curiosidades e locais de memória, capaz de saciar um peregrino até ao encontro final com o Criador.

“Este é o Monte das Oliveiras, aqui está o Monte das Ofensas; o ninho de Cabanas é a Aldeia de Siloé; aqui, além, por toda a parte, fica o Jardim do Rei; debaixo desta grande árvore Zacarias, o sumo-sacerdote, foi assassinado; além fica o Monte Moriá e a muralha do Templo; o túmulo de Zacarias; acolá fica o Jardim do Getsémani e o túmulo da Virgem Maria; aqui fica o Reservatório de Siloé e…”.

Escrito antes da criação dessa personagem memorável que é Tom Sawyer e do ainda mais extraordinário Huckleberry Finn.

Eis a sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante.

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