No final da Idade Média, aconteceu na Europa uma grande e singular mudança na maneira de conceber o tempo e, consequentemente, na maneira como este passou a ser vivido — em particular nas cidades. O aparecimento do mercado como forma organizadora das relações sociais, determinou aquilo a que o historiador Jacques Le Goff chamou de passagem do tempo das igrejas para o tempo dos mercadores.

O primeiro era um tempo que anunciava as horas canónicas da oração, os dias, os meses, as estações, os anos, em suma, eventos de que era inseparável. Era um tempo flexível, que acompanhava os ritmos desses eventos, numa relação íntima com eles. Quando os dias eram mais longos do que as noites, também as suas horas passavam mais lentamente. Nos dias curtos, as horas apressavam-se. Foi um desafio fabricar relógios capazes de medir horas tão flexíveis. O tempo era sensível, palpável, concreto, na verdade era ele mesmo um acontecimento.

A passagem para o tempo dos mercadores desligou o tempo dos acontecimentos, transformando-o, sobranceiro, em não-acontecimento. Não por acaso a mudança de um dia para o seguinte fixou-se à meia-noite, pela calada da noite.

Razões ligadas à organização social e económica que se impunha num tempo de mercadores, e depois de indústrias, terão determinado esta libertação do tempo face aos acontecimentos. Livre deles, podia então medi-los, uniforme e indiferentemente, como se estivesse num plano à parte da realidade. O tempo tornou-se uma grandeza matemática, uma continuidade férrea com necessidade metafísica. Newton chamou-lhe tempo absoluto. Outros chamaram-lhe tempo abstracto (por exemplo, Moishe Postone, que nos deixou no ano passado).

Preferiria chamar-lhe, aqui, tempo desligado. Só assim o tempo, desligado dos acontecimentos como um fantasma inatingível mas que assombra, pôde tornar-se instrumento para a instrumentalização do que acontece, do que as pessoas fazem entre si e ao mundo. O tempo imperturbável que mede a produtividade, o tempo sem fissuras que guarda a memória sem esquecimento das dívidas. Tremendamente influente e, no entanto, inalcançável como uma transcendência.

Mas podemos identificar aqui um padrão. Para além do desligamento do tempo, temos, hoje, o desligamento da verdade e o desligamento da emoção. Aliás, numa época que se estima de pós-verdade e de exacerbamento emocional, importa mostrar como, paradoxalmente, verdade e emoção têm tido destinos muito mais próximos do que contrários.

Não há grande dúvida sobre a perda de valor social da diferença entre verdadeiro e falso, fenómeno a que se tem chamado pós-verdade, e que nos obriga a conviver com fake news como se fossem uma escolha tão inconsequente como preferir vestir de amarelo em vez de azul. Mas, tem faltado notar como essa inconsequência se deve a um novo processo de desligamento, precisamente como sucedeu com o tempo há séculos.

A diferença entre verdade e falsidade, ou mesmo entre as atitudes deliberadas de veracidade e mentira, importa pouco, cada vez menos, socialmente, no âmbito do debate político na esfera pública, porque se desligam, cada vez mais, da realidade, até da preocupação de uma ligação com a realidade. Apenas importa o seu valor enquanto instrumentos de persuasão, moedas de persuasão, tal como o tempo, muito antes, se tornou moeda de valor. Por isso a palavra ‘pós-verdade’ não capta totalmente o que está a acontecer desde os últimos anos na sociedade global.

Persiste vigoroso um uso particular de verdade, e de falsidade, só que é um uso meramente nominal, que isolou e conservou a função persuasiva desligada de qualquer respeito pela correspondência com os factos ou pela consistência argumentativa.

Estamos, pois, num tempo de desligamento da verdade. De outro modo, como compreender a adesão a ideias bizarras como a de que a Terra é plana ou de que é falso o consenso científico sobre as alterações climáticas, e que toma as ideias contrárias como fruto de conspirações originadas nos mesmos lugares donde saiu o politicamente correcto e outros interesses obscuros de dominação da opinião e da crença, tudo isto em conluio com poderes governamentais? As teses obscurantistas tornam-se verdades sem discussão possível. Uma verdade sem razões e com desprezo por elas, por exemplo em muitas expressões de neopentecostais com fome de espaço público, como no Brasil de Bolsonaro, é bem um desligamento comparável ao de um tempo indiferente aos acontecimentos.

Emoções desligadas da realidade

Dir-se-ia que tempo e verdade se desligam porque entrámos numa época de emotividade exacerbada, acrítica, em que se prefere reagir a pensar e se é levado a isso por uma cultura de massas, como parecem evidenciar as redes sociais no seu corropio de emojis e comentários, entronizadores umas vezes, linchadores outras mais, sobretudo nas caixas de comentários online dos jornais.

Esta emotividade exacerbada é um facto, mas esconde outro: é que, surpreendentemente, também as emoções estão a ser desligadas da realidade. Se a emotividade se exacerba na esfera discursiva dada a inaptidão crescente do debate baseado em razões, demasiado moroso para a janela de oportunidade de persuasão, é decisivo sublinhar uma outra tendência de sentido contrário: na esfera da materialidade da vida, as emoções, pelo contrário, parecem estar a ser erradicadas. De novo, um desligamento portanto. E com os seus motivos de eficiência de um sistema.

A guerra realizada por drones não tem traições. A fábrica inteiramente automada não tem greves. As fronteiras fechadas ao refugiado, ao migrante económico e climático, a toda a diferença cultural, não tem incompreensões. Exatamente o mesmo movimento, repetido, de desligar aspectos incontornáveis da vida humana da sua realidade total, confinando cada um deles, primeiro o tempo, depois a verdade, agora a emotividade, a um estrato independente que, em seguida, pode ser mobilizado precisamente sobre os demais aspectos da vida, para a domar.

Não há nada a disputar à ideia de que as emoções têm conteúdo cognitivo e que dele depende, naturalmente, terem sucesso como reacções às situações vividas por quem as sente. Reiterando um pensamento de António Damásio, sem um fundo emocional as razões não se tornam praxis, razão de ser, afinal, da própria ideia de uma esfera pública. O nosso problema não é, portanto, haver emotividade no espaço público. Aliás, como compreendê-lo sem emoções profundas como, desde logo, a de sentir-se incluído, ou excluído?  Mas um sistema de dominação perfeita não tolera a interferência emocional, porque esta resiste e questiona. Na sua “utopia”, a dominação perfeita prefere a paz à guerra. Porque a guerra implica sujeitos e a paz não. Pelo menos, até ver.

A expressão mais acabada de opressão social é a que cancela o ânimo da emoção. Só que o desligamento da emoção deixa-nos a braços com uma patologia da emoção, tal como sucede com a verdade e com o tempo. Talvez seja uma designação equívoca, a de pós-verdade, mas se a assumimos podemos então também falar de pós-tempo e de pós-emoção para descrever o mesmo tipo de mal: as emoções desligadas da realidade perdem conteúdo cognitivo, entregues ao jogo da persuasão e mobilização, com regras de reconhecimento, empatia e aversão, e lógicas de traição e conspiração.

Tal como o tempo indiferente aos acontecimentos, tal como a verdade que despreza razões, as emoções desligadas da vida humana tornam-se, livres de qualquer sentido, instrumento de instrumentalização, nossa e do mundo. No teatro discursivo a que estão confinadas, cada vez mais migrado para a esfera do online, confina-se e embriaga-se a humanidade que, por outro lado, se vê cada vez mais despojada dos direitos existenciais à emotividade. E assim também se explica muito da adesão social maciça às redes sociais, novo ópio do povo ou, em linguagem mais asséptica, conforme aos tempos, analgésico social contra a dor provocada pela erradicação crescente da emotividade da esfera da acção. Acabamos, com o nosso tempo livre, com as nossas aptidões intelectuais, com o nosso empenhamento cívico, a fazer parte deste desligamento do discurso com o real.

A sociedade que se auto-segrega

Sem que déssemos por isso, desligamento sobre desligamento, fomo-nos auto-segregando, num auto-imposto regime de apartheid do humano sobre o humano. É a economia que, tornada abstracta, se desincrustou do habitat social concreto, como sublinhou Karl Polanyi, mas é também a sociedade que se auto-segrega, abstraindo-se da sua própria vida, e se desincrusta do Planeta. A sociedade transformada em instrumento da economia e o planeta em instrumento da sociedade. Ironicamente, a ideia um tanto romantizada de Marshall McLuhan da aldeia global, a bem ver, diz a verdade: não foi o global que se tornou uma aldeia simpática, foram as aldeias que se tornaram, como uma monocultura, repetida e entediantemente globais.

Era preciso refazer ligamentos. Um pensamento social-ecológico integrado, sem desligar dimensões sociais e dimensões ecológicas, sem desligar a economia das pessoas e estas do mundo, que não começasse por avaliar tudo como recursos, naturais ou humanos, numa roda de instrumentalização a que se chama produção. E era preciso perceber também que estes desligamentos são a resposta para a perplexidade de Greta Thunberg, a jovem de 16 anos que inspira as greves climáticas por todo o mundo quando constata como a nossa geração não faz realmente nada para pôr termo à crise climática quando já se sabe tudo o que é preciso para uma solução.

Esta acrasia global seria inevitável num mundo onde o conhecimento teórico e o conhecimento pessoal de que falava Michael Polanyi estão desligados, onde o primeiro dá soluções mas é apenas de uma minoria de especialistas sobre quem é fácil lançar a desconfiança e a suspeita de conspiração, desinformando e iludindo o segundo, de todos nós que em democracia decidiríamos.

O desligamento é, em geral, uma auto-sabotagem sistémica à compreensão e à acção. É, pois, preciso mudar muito para mudar alguma coisa.  Greta tem toda a razão: “não podemos mudar o mundo jogando pelas regras, porque as regras têm de ser mudadas. Tudo tem de mudar e tem de começar hoje.”

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.