As bases do modelo territorial espanhol foram estabelecidas pela constituição de 1978. Durante a transição que pôs fim ao regime franquista, a discussão em torno da autonomia dos territórios era, a par da democratização do Estado, um dos dois eixos centrais do debate. A Segunda República (1931 – 1939) tinha aberto as portas à descentralização da Catalunha, do País Basco e da Galiza (esta região já não viu implementada a sua autonomia) e esse passo foi reconhecido pela nova constituição nas disposições transitórias que permitiam um acesso quase automático a elevadas quotas de auto-governo. Podemos hoje afirmar que o reconhecimento da legalidade e de uma certa continuidade dos governos autonómicos no exílio da Catalunha e do País Basco conferiram legitimidade democrática acrescida a um processo constitucional tutelado pelos militares e pelo que restava do franquismo.

A prova cabal da importância do modelo territorial espanhol reside no facto de, em quase 40 anos, nunca ter sido accionado o já famoso artigo 155º, o único mecanismo de reversão da autonomia previsto na constituição. A não utilização deste instrumento durante tanto tempo não é sinónimo de ausência de desafios ao Estado. Entre 2003 e 2007, o então presidente do governo autónomo basco, Juan José Ibarretxe, apresentou duas proposta de alteração do respectivo estatuto de autonomia que previam a passagem do País Basco à condição de Estado livre-associado com Espanha. Porém, o facto de a ETA ainda se manter activa nesse período limitou a acção de Ibarretxe e impediu-o de ultrapassar as linhas vermelhas traçadas pelas instituições espanholas.

O processo independentista catalão foi, no entanto, muito mais longe no seu desafio à legalidade. A ausência de qualquer tipo de violência por parte dos catalães serviu como combustível ao avanço do processo sem que o Estado conseguisse construir um discurso para sobrepor à simpática narrativa catalã. O governo espanhol, quando actuou, fê-lo de forma desastrosa, como se viu pela violência policial do dia 1 de Outubro. Mariano Rajoy, um dos piores governantes da história democrática de Espanha, incapaz de visualizar a dimensão da ferida catalã, vê-se assim obrigado pelas circunstância a entrar a fundo num território desconhecido, suprimindo uma parte considerável da autonomia da região.

A intervenção ainda não começou, mas os últimos dias não auguram nada de bom. Desde que esta possibilidade foi ganhando forma, os líderes regionais do partido de Rajoy já ameaçaram três comunidades com a aplicação do artigo 155º: País Basco, Castilla La Macha e Navarra.

Está oficialmente aberta a Caixa de Pandora para o nacionalismo espanhol.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.