Há uns anos atrás descobri, graças a Oliver Sacks, a existência de uma pandemia da qual nunca ouvira falar: a encephalitis lethargica ou, mais comummente, “doença do sono”, que terá afetado cerca de cinco milhões de pessoas ao longo de uma década, de 1916-17 a 1927. Trata-se de uma doença estranhíssima. Deixava os pacientes num estado de coma profundo, ou em estados de insónia tão intensos que tornava impossível sedá-los. Para além disso, podia provocar nos pacientes que sobreviviam, dependendo dos casos, um conjunto de sintomas muito diversos, incluindo perturbações no sono, sexualidade, afetos, ou apetite, tendendo a tornar os sobreviventes apáticos, passivos, como zombies.

Esta descrição é retirada do livro “Awakenings” (pp. 12-14) de Sacks. Trata-se, como grande parte da restante obra deste neurologista tornado escritor de raro talento na forma de combinar conhecimento científico com a narração dos casos médicos de forma humana, integrando-os na totalidade da história de vida dos pacientes, de um livro magnífico e surpreendente.

Relata as histórias de 20 pacientes por ele tratados no hospital Mount Carmel, em Nova Iorque, a partir do final da década de 1960, que tinham sobrevivido à doença, e que se encontravam, na maior parte dos casos, quase completamente incapacitados e imobilizados. Seguindo o fio da narrativa, vemos como, em 1969, com recurso à substância L-DOPA, estes pacientes ‘acordam’, ganhando uma nova vida 50 anos depois – bem como todas as complicações clínicas que se seguem.

O livro teve um sucesso notável, tendo dado azo a várias adaptações para teatro (incluindo a peça “A Kind of Alaska” de Harold Pinter), rádio e outros formatos, e foi definitivamente popularizado com a adaptação para cinema, com interpretações de Robert De Niro e Robin Williams (este, no papel de Sacks) no filme homónimo “Despertares” de 1990.

Trauma coletivo e não inscrição

Parte do que me impressionou nesta descoberta feita com Sacks foi a minha própria ignorância sobre o assunto. Como era possível eu nunca ter ouvido falar antes de uma pandemia tão insólita? O próprio Sacks descreve este fenómeno, citando uma hipótese explicativa para tal ignorância geral, incluindo a forma como esta e outras pandemias tendem a desaparecer da memória coletiva: “aquilo que nos parece intolerável tende a varrer-se-nos da memória, à medida que o tentamos esconder, ainda que o evento permaneça connosco” (p. 13).

Com efeito, a pandemia de encephalitis lethargica assumiu a sua forma mais virulenta num período temporal (entre o final de 1918 e o início de 1919) em que outra pandemia, a de gripe pneumónica, que afetou muito mais pessoas, apareceu em força. E não nos esqueçamos que tudo isto se passou no momento em que terminava a Primeira Guerra Mundial. Assim, não é tanto de estranhar que, no momento em que Sacks publica o livro (1973) pouca atenção fosse dada a esta doença, que praticamente desaparecera em 1927.

Com esse desaparecimento, deu-se “um grande suspiro de alívio” e “tentou-se esquecer os horrores da década anterior” (p. 320). Tudo se passa, portanto, como se os efeitos de uma espécie de trauma coletivo simplesmente levassem as pessoas, passado o pico de stresse em que o evento se apodera das suas vidas e absorve toda a atenção, a não lhe dar demasiada importância e a simplesmente seguir em frente, quase como se não tivesse acontecido.

Ora, a propósito deste efeito, adverte Sacks: “tais esquecimentos são tão perigosos quanto misteriosos, pois dão-nos um sentimento de segurança que não se justifica” (p. 320). Compreende-se, portanto, que ocorram, mas não deixam de comportar riscos. Desde logo, o da possibilidade de que não se retire deles conclusões que nos permitam aprender e mudar o que precisa de ser mudado.

Em contexto diferente, José Gil, no livro de 2004 que se tornou famoso, “Portugal, Hoje: O Medo de Existir”, descrevia o nosso país como sendo particularmente propenso à “não-inscrição”, uma espécie de “branco psíquico” (p. 19) que relativiza as coisas, faz com que escândalos ou outros problemas rapidamente desapareçam da memória. Isto porque “nada tem realmente importância, nada é irremediável, nada se inscreve” (p. 18).

Pode a normalidade voltar a ser aquilo que era?

Como já se terá percebido, convoco estas análises a propósito da pandemia de Covid-19. No dia 5 de maio, a Organização Mundial de Saúde declarou o fim da Covid-19 como emergência de saúde global. Em Portugal, pouco tempo antes, já tinha desaparecido o resto de medidas restritivas que ainda vigoravam, como a obrigatoriedade de uso de máscara em hospitais e lares.

Para quem passou por esta pandemia, com tudo o que ela acarretou em termos de tragédia e estranheza, é difícil exagerar o tal alívio que se sente por, finalmente, se poder tentar deixar para trás aquela vida restringida e associal (uma espécie de negação de uma ‘forma de vida latina’, feita de proximidade e contacto) que tantos danos causou. Falo, aqui, da parte da população para quem ‘seguir em frente’ é mais facilitado, o que não abrange os casos trágicos de quem perdeu próximos para a doença ou ficou com sequelas graves.

Fazer com que a pandemia de Covid-19 deixe de dominar as nossas vidas, e se vá gradualmente dissolvendo no nosso inconsciente pessoal e coletivo, é uma reação tão mais expectável quanto ela também se insere no ciclo mediático da concentração temática hiperbólica seguida de exaustão. Durante mais de dois anos fomos sendo bombardeados com informação sobre a Covid-19 e as consequências da mesma a todos os níveis. Curiosamente, quando se deu a invasão russa da Ucrânia, o ciclo mediático mudou e a exaustão foi permitindo o gradual desvanecimento mediático do evento.

Porém, neste início de rescaldo, a pergunta que se impõe é: pode (ou deve) a tal ‘normalidade’ tantas vezes referida ao longo da pandemia voltar a ser aquilo que era? Terão as notícias sobre a tão famigerada ‘nova normalidade’ sido exageradas?

Não me atrevo a pronunciar-me sobre questões médicas ou de organização do Serviço Nacional de Saúde, sobre as quais não tenho competência. Mas há um primeiro nível, micro-sociológico, sobre o qual me parece importante refletir. É que ao nível do comportamento individual muito do que se ‘normalizou’ foram preceitos que, na verdade, até fazem sentido de um ponto de vista de senso comum.

Por exemplo, o hábito de lavar as mãos de forma frequente e adequada. Ou a decisão de não se ir trabalhar quando se está constipado, para não se correr o risco de contagiar os colegas. Ou ainda, nos casos em que se está nessas condições e a interação social é inevitável, o uso de máscara para proteção do próprio e dos outros.

Não tenho dados que corroborem o que afirmo em seguida, mas, a julgar pela quantidade de vezes que já me deparei (mesmo em hospitais) com dispensadores de álcool gel vazios, e pela escassez de pessoas a usar máscara em todos os contextos sociais, parece mais ou menos seguro admitir a probabilidade de esse tipo de hábitos não ter entrado definitivamente na nossa cultura, ao contrário do que acontece já há muito tempo noutras latitudes, como no Japão.

Trabalho e ambiente

Os exemplos precedentes podem parecer sem importância. Caberá aos especialistas de saúde pública uma reflexão mais aturada sobre os comportamentos que deverão passar a ser constantes para prevenção futura do alastramento de novas doenças.

Não queria, contudo, terminar este texto sem referir o impacto (ou falta dele) da pandemia na questão do trabalho e, indiretamente, do ambiente. Fruto da necessidade, a pandemia naturalizou o trabalho remoto e o teletrabalho. À medida que trabalho em equipa, reuniões, eventos académicos, foram naturalmente sendo transferidos para um formato online, foi-se revelando o absurdo de algumas práticas habituais anteriores.

Por exemplo, a falta de sentido de viagens de longo curso para efeitos de trabalho, para o que poderia ter sido uma videochamada. Ou os custos, não só económicos, como também no que ao tempo perdido (e respetivo impacto na qualidade de vida) diz respeito, de deslocações quotidianas entre a casa e o local de trabalho, sobretudo num país em que os salários são baixos, a oferta de transportes públicos é insuficiente e muitas pessoas são obrigadas a viver longe do local de trabalho, perdendo diariamente imenso tempo (e dinheiro) em deslocações de carro.

Resta relembrar o impacto ambiental deste estilo de vida. É curioso recordar como, no início da pandemia, as pessoas começaram espontaneamente a comportar-se de uma maneira não muito diferente do que se supõe ser necessário para diminuir o risco ambiental: entre outras coisas, viajando menos. Sabe-se como a pandemia reduziu a poluição durante os confinamentos.

Percebe-se que essa alteração comportamental, quando não foi imposta, foi autoinduzida por um medo muito concreto e imediato, o da Covid-19. Por comparação, a ameaça das alterações climáticas parece (erradamente) mais longínqua e difusa.

Durante algum tempo, parecia que o teletrabalho e o trabalho remoto seriam a nova norma, e a moda dos nómadas digitais levou a algumas decisões duvidosas. Mas parece ter chegado o momento do retrocesso nestas dinâmicas, à medida que (e apesar da nova Agenda do Trabalho Digno, que reforça os direitos dos trabalhadores em teletrabalho) cada vez mais empresas exigem um retorno do trabalho presencial.

É preciso não exagerar. Muitas funções não são suscetíveis de ser feitas à distância, ou, podendo sê-lo, perdem qualidade. É o caso das aulas online que, para além da dificuldade da transmissão de conteúdos, agravam dinâmicas de desigualdade. E existem também muitas dinâmicas que são favorecidas pelo formato presencial.

Mas, tendo em conta os impactos referidos, seria um erro, em casos de funções que podem ser feitas remotamente, não dar margem de escolha aos trabalhadores para que, salvaguardados os resultados, possam optar por trabalhar de forma não (ou não totalmente) presencial. É que a pandemia aconteceu mesmo, e não aprender com ela pode ser tentador, mas não deixa de ser um erro.