Li há dias uma frase de Salazar que dizia “os homens mudam pouco e os portugueses não mudam nada”. Não se sabe se Salazar estaria a referir-se a si mesmo, mas é evidente que esta opinião impregnou a política do Estado Novo. Portugal não precisaria de mudar porque os portugueses não mudam nada.

A frase tem um fundo de verdade: os portugueses são ultraconservadores, avessos à incerteza, ao risco, à mudança. Uma vez acomodados no seu cantinho na aldeia, na cidade, na Europa, pobres mas aparentemente seguros, mudar mesmo que para melhor, é um tormento. A ambição não faz parte do habitus social, nem sequer é bem-vista e é causadora de invejas ressabiadas. Uma ida à praia ao domingo mostra como bastam umas ameijoas e passear-se de tanga pelo areal, libertar e exibir o corpo (ao menos isso), molhar os pés, para se atingir uma certa felicidade – breve, muito breve, para logo ser esquecida na fila na estrada no regresso à realidade, ao subúrbio e à telenovela.

Depois de Alcácer Kibir, cuja ocorrência perfaz 445 anos no dia 4 de agosto, que dizimou a elite portuguesa e conduziu à perda da independência, o maior erro estratégico e com consequências mais duradoras para a Portugal foi recusa de Salazar em democratizar e depois da vitória Aliada em 1945 e modernizar o país com a ajuda do Plano Marshall, a que se seguiu a recusa de descolonizar num momento em que nos anos 50 e 60 as outras potências coloniais europeias o fizeram. A insistência na manutenção de um império colonial prosseguida por Marcelo Caetano iria acabar mal para o regime e teria consequências estratégicas não desejadas e inesperadas em Portugal e em África. A insustentabilidade do império deu origem ao golpe de Estado de 25 de abril de 1974, conhecido por “Revolução dos Cravos”, um processo aproveitado pelas forças comunistas para a conquista do poder que só foi derrotado a 25 de novembro de 1975, depois de devastada a estrutura industrial e empresarial de Portugal. O erro estratégico do Estado Novo conduziu à intromissão catastrófica da URSS no processo político de democratização e na economia de Portugal de que continuamos, 50 anos depois, a sofrer as consequências.

Depois da Segunda Guerra, Salazar mudou, mas apenas o suficiente para a integração de Portugal na economia internacional. A oportunidade oferecida pelo plano proposto pelo secretário de Estado George Marshall dos EUA a 5 de Junho de 1947, foi aproveitada pelo regime apenas parcialmente. Segundo Maria Fernanda Rollo em Portugal e o Plano Marshall: história de uma adesão a contragosto (1947-1952) (Análise Social, 1994) só após um ano de hesitações e de sobranceria perante os EUA, o governo de Salazar decidiu participar no Plano Marshall. A reticência de Salazar é tanto mais espantosa quando o isolamento internacional do país tinha ficado evidente apenas um ano antes, em agosto de 1946, quando do pedido de adesão às Nações Unidas apresentado por Portugal – outra iniciativa diplomática dos EUA. O pedido fora rejeitado pelo veto da URSS e pelo voto negativo da Polónia por causa da política colonial. Portugal só viria a ser aceite na ONU quase uma década mais tarde, em 1955.

Inicialmente, Salazar e o ministro das Finanças tinham-se declarado veementemente contra qualquer possibilidade de aceitar auxílio financeiro norte-americano. Salazar afirmava que apenas lhe interessava exportar para os países devastados pela guerra, mas como as exportações portuguesas eram “produtos de luxo” isso teria pouco significado na balança comercial. Além disso, talvez mais importante, como a economia portuguesa estava ligada à libra esterlina da qual possuía elevadas reservas, tinha receio de que o dólar viesse a afirmar-se como a moeda de reserva, como de facto veio a verificar-se.

Além disso, Salazar teve de aceitar certamente a contragosto a condição imposta pelos EUA de os países europeus aceitarem gerir o programa de ajuda solidariamente entre si e em conjunto com os EUA. A sua aversão às democracias era proverbial. A solidariedade, citando Rollo, «imposta» (pacificamente aceite, por ausência de alternativas) conduziu à criação em 1948 da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) no seio da qual se aprofundaram os debates, se concertaram as primeiras medidas e se consagrou formalmente o programa económico comum, no quadro do qual ficou definida a ajuda americana entretanto aprovada pelo Congresso dos EUA. Portugal, como os demais países da Europa ocidental (à excepção da Espanha), integrou-se nesse complexo processo.

Segundo o então embaixador americano em Lisboa, seria «de esperar que os portugueses se reservassem um papel de observadores e não procurassem participar ativamente na formação de qualquer programa de cooperação para a recuperação económica da Europa tal como foi sugerido por Marshall». Enquanto no início da execução do Plano a integração de Portugal interessava aos EUA, após a adesão de Portugal à NATO em abril de 1949, esse objetivo estratégico dos EUA ficara resolvido e a integração de Portugal no Plano Marshall deixara de ser relevante. A Base nos Açores estava assegurada. Nesse mesmo ano por coincidência no dia em que nasci, Salazar declarava, com algum desespero, perante o Conselho de Ministros, ser gravíssima a situação económica e financeira do país. «Dos créditos a serem concedidos pelos Estados Unidos, ao abrigo do Plano Marshall, apenas seria possível contar com cerca de dez milhões de dólares, e não com os sessenta a cem milhões que Portugal acabara por solicitar”, escreveu Franco Nogueira.

Todavia, segundo Rollo, no total, para além do auxílio indireto, Portugal beneficiou diretamente de um montante que ultrapassou os 54 milhões de dólares, o equivalente a cerca de 700 milhões de dólares hoje. A investigadora admite que não é possível medir o significado e o alcance que essa assistência financeira terá tido para a economia portuguesa, nomeadamente no que respeita à contenção e superação da crise multifacetada que começou a abalar a sociedade portuguesa pouco depois da cessação das hostilidades.

Todavia, Rollo faz reparar que o Plano contribuiu para a constituição de uma elite técnica formada nos contactos e nos trabalhos levados a efeito no interior de uma multiplicidade de instituições internacionais (na primeira linha das quais se encontra a OECE), o acréscimo de conhecimento sobre os meandros do comércio internacional e a aprendizagem intensiva para lidar com os novos instrumentos do sistema monetário e financeiro internacional saído de Bretton Woods. Esta atividade viria a constituir uma aprendizagem útil para a participação ativa de Portugal na criação da European Free Trade Association (EFTA) em 1960.

O Plano Marshall interessou uma parte significativa dos agentes económicos do país, incluindo o próprio Estado e terá catalisado outros agentes económicos privados poderosos no processo de industrialização. Rollo salienta que historiadores de toda a Europa têm posto em relação a certos países incluindo Portugal, ou mesmo em relação à Europa como um todo, a questão de saber até que ponto e em que medida as autoridades portuguesas souberam aproveitar o Plano Marshall, potenciando as suas virtualidades ou superando os seus inconvenientes.

Apesar de tudo, Rollo assinala que entre Setembro de 1947 e Setembro de 1948, o governo português efetuou uma das mais importantes (e agora evidente) inversões de política externa levada a cabo durante a vigência do Estado Novo, alterando no espaço de um ano a sua posição face ao auxílio financeiro Marshall e o que isso significou em termos dos aspetos estratégicos essenciais dessa política externa. O Plano Marshall foi o elemento causador de uma das mais significativas alterações da política externa portuguesa conduzida pelos governos de Salazar. Todavia, ficou por resolver pacificamente a questão colonial. A história do regime, a participação na NATO e a base nos Açores eram garantes suficientes da fidelidade ao Ocidente e de oposição à URSS.