Muito se disse e escreveu nos últimos dias sobre feitos e defeitos de Mário Soares. A contrastar com o quase unanimismo do politicamente correto surgiram algumas vozes a destoar que lembraram temas do passado aparentemente já esquecidos. Estou convencido que o próprio acharia alguma graça à discussão. Quase todos testemunharam o inestimável contributo de Mário Soares na luta contra os totalitarismos, fossem eles de direita ou de esquerda. É bem verdade que lhe devemos esse tributo. Portugal seria hoje diferente se Mário Soares não tivesse existido. E isso não é de somenos importância.

Sou um observador atento da realidade política portuguesa, mas não tenho da vida de Mário Soares um conhecimento profundo. Sei o que quase todos sabem. Era uma pessoa especial pelo percurso de vida, pela irrequietude, pelo carisma, pelo desassombro, pela capacidade de improviso, pelo temperamento, pela paixão que colocava em tudo o que fazia. Mas era ao mesmo tempo uma pessoa normal na forma como falava com toda a gente, na informalidade no trato, nos caprichos, no gosto pela conversa e pelas coisas boas da vida. Neste sentido conseguiu ser um líder político durante várias décadas sem nunca ter deixado de ser também um cidadão comum.

A geração de Soares está a chegar ao fim por circunstâncias normais da finitude da vida. Mas políticos como Soares já não existem há muito tempo. E, salvo raras exceções, não parece que possam vir a reaparecer tão cedo.

Abraçar desafios, correr riscos, quebrar convenções, procurar soluções, combater duramente os adversários, lutar por causas, são caraterísticas de líderes determinados. Fazê-lo de forma apaixonada e constante é próprio daqueles que ganham um lugar na história. Hoje temos políticos que apenas estabelecem metas de curto prazo, que obedecem a convenções, que adiam problemas, que gostam do status quo. São líderes cinzentos e sem alma de quem a história não se recordará. Política sem paixão é apenas emprego. Hoje, infelizmente, o combate político tem por base a manutenção de interesses e o acesso aos corredores de um poder que distribui colocações e benesses. As causas, essas, ficam apenas para os discursos.

Acreditar em valores e lutar por eles não é hoje moda numa Europa velha e incapaz de se reinventar. Governantes que marcaram as últimas décadas do século XX como Mário Soares, François Mitterrand, Margaret Thatcher, Helmut Kohl, Jacques Delors, Felipe González e alguns outros, mais à direita ou mais à esquerda, são hoje apenas memórias de um tempo em que a política se sobrepunha à economia.

É tempo de transmitir às novas gerações o exemplo de homens que desafiaram poderes instituídos, que lutaram por ideais e que procuraram transformar o mundo. Só assim estaremos a prestar homenagem a quem indiscutivelmente a merece e a preparar o caminho para um amanhã que se espera muito diferente, para melhor, do que o ambiente perturbante e perturbado em que hoje vivemos.