No livro “A Decent Society” o filósofo israelita Avishai Margalit afirma que uma sociedade ‘decente’ é aquela cujas instituições não humilham as pessoas, e a sociedade ‘civilizada’ aquela cujos membros não se humilham uns aos outros (p. 23).

À luz desta definição, podemos perguntar: como se devem comportar as instituições que queiram respeitar os requisitos de ‘decência’ e ‘civilidade’, entendidos como ausência de humilhação? É neste sentido que proponho esta breve reflexão sobre o contexto profissional em que me movo, o da Universidade portuguesa. Antes de nela entrar vale a pena recordar, em traços gerais, a polémica mais recente, para a recolocar na reflexão mais geral.

O caso CES

O mês passado voltou a trazer ao debate público o problema do assédio nas instituições universitárias portuguesas, a propósito das acusações dirigidas a três investigadores do Centro de Estudos Sociais (CES), incluindo Boaventura de Sousa Santos. A polémica estalou com a publicação do capítulo “The walls spoke when no one else would” da autoria de Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom, publicado pela Routledge.

Nesse texto as autoras apresentam um relato autoetnográfico que visa dar conta das suas experiências pessoais e reconduzi-las a uma descrição que, tendo algo de semelhante à de muitas outras experiências vividas por outras pessoas noutros contextos, aponta para traços que podem ser considerados “sistémicos”. O texto em si não nomeia indivíduos nem instituições, mas é suficientemente específico para se terem tornado evidentes as identidades quer da instituição quer dos investigadores visados.

Essas descrições remetem para suspeitas de variadas ordens, desde o assédio sexual ao assédio moral e à conivência da instituição e de alguns dos seus responsáveis. Ao tornar-se pública a polémica, outras denúncias de assédio foram surgindo contra Boaventura de Sousa Santos (nomeadamente por parte de Moira Millán e Bella Gonçalves), e o caso judicializou-se, com a ameaça de instauração de queixas-crime por difamação. Entretanto, o CES anunciou a constituição de uma comissão independente para investigar formalmente os casos e a suspensão de todos os cargos dos investigadores visados.

Em relação a este caso concreto, e na ausência de conhecimento privilegiado sobre aquilo que se relata, a prudência recomenda: 1) que não se descredibilize as denunciantes ou os métodos escolhidos para articularem as suas experiências, sob pena de incentivar ao silêncio quem quer que, no futuro, se encontre envolvido em situações de assédio no contexto de relações assimétricas de poder; 2) que se respeite a presunção de inocência dos visados, dando tempo à instituição para averiguar este e outros casos que surjam, e daí tirar as suas consequências.

As reações

O debate sobre este caso suscitou uma panóplia de reações que é preciso distinguir, e referir-me-ei apenas a algumas. Um dos tipos de reação pareceu mais interessado com o facto de as denúncias visarem Boaventura de Sousa Santos e o CES do que propriamente com a existência de casos de assédio moral e sexual, abusos de poder, humilhação e outros tipos de violência na Universidade portuguesa.

Assim, e dando largas à sua Schadenfreude, o relevante tornou-se o facto de as acusações atingirem uma instituição, e sobretudo um autor de relevo público cujo nome se confunde com o da própria instituição, assumidamente progressistas. Assim, nesta denunciada distância entre a teoria e a prática residiria o pecado original de uma hipocrisia que serviria para desqualificar a própria instituição.

A partir daí houve solo fértil para todas as extrapolações. Talvez a mais caricata, até por vir de quem tem responsabilidades parlamentares, tenha sido a de Carlos Guimarães Pinto quando, ao comentar o financiamento público da FCT ao CES, sugeriu que ali não se fazia “investigação científica séria” por alegadamente ser um “viveiro ideológico partidário”, lançando suspeitas sobre a isenção das avaliações dos centros e laboratórios associados, e deixando implícita a sugestão de que se deveria retirar o financiamento desta instituição.

Ora, tem de se negligenciar toda a diversidade interna e o largo historial de trabalho meritório feito pelos imensos investigadores que já passaram por essa instituição, incluindo o significativo sucesso na atração de financiamento externo competitivo a nível europeu, para se poder fazer tal sugestão. É preciso não confundir as coisas.

Mais interessantes foram as tentativas de, a propósito do caso concreto, focar a questão que importa debater, e que é precisamente a das dimensões sistémicas para as quais o texto original das três investigadoras apontava. O principal contributo veio do importante manifesto “Todas sabemos”, subscrito por mais de 800 académicos, agentes culturais e outros profissionais.

Nele, para além de se mostrar solidariedade para com as denunciantes e se repudiar os ataques de que são ou possam vir a ser alvo, assinala-se o carácter “estrutural e estruturante” do assédio sexual e moral, do “extrativismo intelectual” e de outras formas de violência de um “sistema académico fundado em marcadas hierarquias profissionais e divisões de classe, género e raça”. Comentando a ineficácia dos mecanismos existentes, apela à universalização dos instrumentos de denúncia anónima com garantias de proteção às vítimas, assegurados por comissões independentes.

Em sentido diferente vai o artigo “Vigiar e punir ou educar e prevenir”. Este, sublinhando o princípio de presunção de inocência e rejeitando julgamentos sumários da imprensa e das redes sociais, contextualiza a prevalência do assédio na realidade laboral portuguesa, citando números que apontam para a perceção relatada por entre 500 e 750 mil trabalhadores portugueses, e segundo a qual sofrem assédio moral. Mostrando ceticismo em relação à multiplicação de comissões que possam servir como instâncias de “vigilância”, aposta na educação, “fundamental para promover relações saudáveis entre iguais”.

Pode, no entanto, sustentar-se, que ambos os objetivos – a criação de mecanismos independentes que protejam denunciantes e acusados e o trabalho prévio de sensibilização pela educação – são complementares. A denúncia, a ser verdadeira, ocorre quando o mal já está feito, o que não aconteceria se o comportamento individual tivesse sido evitado por força da interiorização de uma norma comportamental.

Mas é preciso ter em conta a complexa interação entre três fatores: não só os comportamentos individuais e as normas legais e aparato institucional como também o vasto espaço que medeia entre o indivíduo e as instituições, e que é ocupado por práticas sociais mais ou menos consentidas, mas que muitas vezes traem os princípios pelos quais supostamente nos regemos, e que por isso devem poder ser criticadas e transformadas. Não há transformação eficaz que não produza efeitos a estes três níveis. Daí a importância quer da educação quer dos mecanismos concretos.

A autocrítica e o exemplo dado pelas instituições

Tendo isto em conta, voltemos à questão inicial, e vejamos por que motivo a Universidade ocupa um lugar específico na questão sobre a decência e a civilidade das instituições. É que ela tem um estatuto duplo. Enquanto local de trabalho e instituição social, é tão atravessada pelas dinâmicas de abuso como outras instituições. Mas, pelo papel que desempenha na formação de estudantes e, no caso da Universidade pública, pela função social básica de assegurar igualdade de oportunidades e servir de meio a uma mobilidade social ascendente e a uma emancipação pelo saber, a Universidade deveria aspirar ao estatuto de instituição exemplar.

Perdoe-se-me a limitação da comparação, mas a polémica sobre a Universidade de certa forma recorda-nos a polémica sobre a Igreja. Não quero comparar graus de gravidade, sobretudo tendo em conta que no caso da Igreja estão envolvidos menores. Mas aquilo para que quero chamar a atenção é o seguinte. Aquilo que torna ainda mais chocantes os casos de abusos sexuais na Igreja é o facto de acontecerem numa instituição que é fonte de sentido para os seus fiéis e que, por isso, tem o dever de acolher e proteger, sobretudo os mais vulneráveis. E é por isso que apontar para prevalências generalizadas de abusos na sociedade em geral nunca serve de atenuante para o choque que é qualquer caso de abuso, nem desagrava, bem pelo contrário, o problema da sua ocorrência em instituições que devem ser exemplares.

Em certo sentido, aquilo que estamos aqui sempre a discutir é a forma como se trata a vulnerabilidade. Numa instituição decente e civilizada tratam-se as pessoas com respeito e reconhecimento e protegem-se os vulneráveis, evitando os diversos tipos de humilhação, como os abusos de poder, e outras formas de violência. E quanto mais desigual for uma instituição, e menos proteger alguns dos seus membros, mais expostos estarão a estas dinâmicas.

Uma universidade é feita de estudantes, docentes, investigadores e outros trabalhadores. Uma análise aprofundada dos fenómenos de humilhação incluiria até aqueles aparentemente mais inócuos e socialmente mais enraizados, como a praxe. Mas quando se discute a situação específica dos investigadores em Portugal, não há como não referir a precariedade generalizada, e grande parte das intervenções sobre o caso do CES fê-lo.

Com efeito, como tem sido assinalado, num contexto de oportunidades escassas de financiamento e competitividade exacerbada, a tendência para aguentar o sofrimento em silêncio é agudizada. Esta correlação existe e começa a ser discutida. Ela tem sido debatida no contexto da plataforma Universidade Comum, cujo debate “Como combater a normalização do abuso na Universidade Portuguesa”, no qual participei, me instigou a desenvolver algumas das reflexões apresentadas aqui. Esta autocrítica da Universidade é um trabalho ainda no início, mas que é vital prosseguir. À ciência e ao ensino superior exige-se sempre excelência; bem que se poderia começar por assegurar decência.