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Preços de transferência 20 anos depois

Depois de duas décadas de estabilidade, foi necessário alterar a legislação, para refletir as melhores práticas internacionais e ter em conta as profundas alterações verificadas na economia, nomeadamente, com a digitalização.
27 Janeiro 2022, 17h13

A legislação dos preços de transferência, em Portugal, tem beneficiado de um fenómeno que, normalmente, se manifesta em sentido oposto nas outras áreas da fiscalidade: a estabilidade. A legislação aplicável, alinhada com as melhores práticas internacionais da altura, foi introduzida no ordenamento jurídico português há cerca de 20 anos e, desde então, sujeita a poucas alterações. No entanto, nesses 20 anos a economia e, em especial, as cadeias de valor dos negócios com o advento da digitalização, alteraram-se radicalmente. Os fenómenos de criação, rentabilização e deslocalização de ativos intangíveis e as reestruturações empresariais sofreram também um incremento significativo.

Diversas iniciativas da União Europeia e da OCDE como o BEPS, as ATAD, os mecanismos de troca de informação bancária como o FACTA e o CRS e de reporte de planeamento fiscal agressivo (DAC6), as mais recentes propostas sobre a tributação dos negócios digitais (Pilar 1 e Pilar 2), entre outras, reclamavam uma atualização da regulamentação portuguesa sobre preços de transferência, por forma a que a mesma pudesse acompanhar as novas realidades dos negócios que, de certo modo, e numa vertente fiscal anti-abuso, visa disciplinar.

O desafio de atualizar a legislação de preços de transferência implicava realinhá-la com as melhores práticas internacionais, nomeadamente com as recomendações da OCDE. E impedir que a receita tributária ao nível dos diversos impostos afetados por esta realidade fosse negativamente impactada. Era ainda necessário responder aos apelos das empresas no sentido da simplificação das suas obrigações declarativas.

Assim, com a nova regulamentação publicada em dezembro de 2021, entre outras medidas, adotou-se, embora com algumas particularidades, o modelo de documentação preconizado pela OCDE (master file/local file) e aumentou-se o patamar de rendimentos que as empresas terão que auferir para serem obrigadas a preparar (e, eventualmente, entregar à AT) a sua documentação de preços de transferência.

Por outro lado, e eventualmente visando evitar a fragmentação propositada de entidades, introduziram-se regras que determinam que os limites mínimos de rendimentos que obrigam a documentar serão desconsiderados sempre que o sujeito passivo seja notificado para fazer prova da paridade de mercado dos preços e condições praticados nas suas transações com partes relacionadas. Com o intuito de credibilizar e responsabilizar os prestadores de serviços profissionais que realizam estudos de preços de transferência, os mesmos terão que passar a emitir, conjuntamente com o resultado do seu trabalho, uma declaração de responsabilidade técnica. Fica agora também claro que a AT, ao promover ajustamentos em sede de preços de transferência, e estando em causa intervalos estatísticos de valores de referência de mercado, tais ajustamentos terão como referência a mediana do intervalo.

Parece evidente que se pretendeu, com a nova regulamentação, centrar a atenção das equipas de inspeção tributária nos sujeitos passivos com dimensão relevante e, essencialmente, naqueles enquadrados num contexto significativo de transações com partes relacionadas suscetíveis de gerar situações de potencial evasão fiscal.

Só o futuro dirá se as alterações atingirão os objetivos pretendidos, mas parece evidente que esta matéria tem um papel cada vez mais importante na proteção da receita fiscal arrecadada em Portugal em sede de IRC, acabando por ser crítica também no que respeita à arrecadação de outros impostos, como o IVA, IMT, Imposto do Selo e direitos aduaneiros, para citar apenas alguns. É, também, um fator que ajuda a combater a concorrência desleal entre empresas nacionais e estrangeiras. E, no plano do corporate governance, começa a ganhar uma relevância fundamental ao permitir aquilatar se, por exemplo, as transações entre uma sociedade e alguns dos seus acionistas foram realizadas em condições que não prejudicam os demais, nomeadamente os minoritários. Aliás, as empresas cotadas em bolsa já têm obrigações de reporte específicas relativamente a este tipo de transações.

A Comissão Europeia apresentou há poucas semanas uma iniciativa que pretende combater o recurso abusivo a entidades fictícias para efeitos fiscais indevidos. A proposta visa garantir que as entidades da União Europeia com uma atividade económica nula ou mínima não usufruem de quaisquer benefícios fiscais e não representam um encargo financeiro para os contribuintes. Se a diretiva proposta acabar por ser aprovada, existirá uma forte conexão com as regras de preços de transferência, podendo ser colocada em crise, por exemplo, toda a estrutura de débitos efetuados por uma destas entidades fictícias sem substância económica às suas partes relacionadas.

Também as regras já antes mencionadas relativas ao Pilar 1 e Pilar 2 da nova tributação dos negócios digitais, com o seu mecanismo formulário de alocação de resultados e com a sua taxa mínima de IRC de 15%, suscitarão novos desafios no que respeita à aplicação das regras de preços de transferência, com especial impacto na dimensão da potencial dupla tributação internacional dos rendimentos.

Provavelmente, e como resultado de todas estas alterações que estão a acontecer no plano internacional, a estabilidade da legislação de preços de transferência a que assistimos até agora será, daqui para a frente, posta seriamente à prova.

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