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Quem paga o dinheiro lançado do ‘helicóptero’? Nós, se o BCE não anular a dívida

Pôr dinheiro diretamente no bolso dos contribuintes é uma das medidas que poderá ser utilizada para revitalizar uma economia em suspenso por causa da Covid-19. Mas o chamado ‘dinheiro de helicóptero’ terá uma fatura que será paga pelos impostos, a menos que o Banco Central Europeu faça um ‘write-off’ da dívida.
24 Março 2020, 08h17

Na semana passada, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse que queria pôr dinheiro diretamente nos bolsos dos americanos. É uma das medidas que está a ser equacionada pela Casa Branca no pacote de 1,3 biliões de dólares que o governo quer fazer passar no Congresso para apoiar uma economia que está no ‘fio da navalha’ devido ao novo coronavírus.

“Os americanos precisam de dinheiro e precisam de dinheiro agora”, disse Steven Mnuchin, secretário de Estado do Tesouro norte-americano, depois de Donald Trump ter anunciado que pretendia lançar dinheiro de helicóptero.

O conceito – helicopter money – não é de agora. Foi teorizado pelo economista Milton Friedman em 1969, que postulou que a melhor forma para impulsionar a inflação e estimular a atividade económica era a de dar dinheiro diretamente às pessoas. Embora a metáfora pressuponha sempre alguém a sobrevoar a cidade civil de helicóptero, atirando de lá de cima dinheiro cá para baixo, a verdade é que o conceito tem várias configurações.

Pode consistir na entrega de dinheiro diretamente aos consumidores, como Donald Trump pretende. Ou pode ser  uma atuação ao nível da dívida das pessoas, reduzindo-a.

“Quando alguém diz que pode haver um atraso do pagamento das prestações do crédito à habitação sem juros, a parte do ‘sem juros’ é dinheiro lançado de helicóptero”, disse ao Jornal Económico um economista que pediu para se manter no anonimato por ter executado funções de Estado.

Para Carlos Almeida, diretor de investimentos do Banco Best, o tema do helicopter money “chega agora porque, do ponto de vista económico, a Terra parou de girar”. “De repente as pessoas deixam de receber dinheiro para subsistir e então o Governo substituí-se para conseguir pagar e dar subsídios às pessoas”.

“Este dinheiro vem por parte dos bancos centrais ou por parte dos governos que emitem dívida. Essa dívida pode ser comprada por parte dos bancos centrais e depois há este efeito de entrega às pessoas. Quem entrega é o Estado. O Estado emite obrigações e essas obrigações depois são compradas no mercado secundário essencialmente através dos bancos centrais”, explicou o diretor de investimentos do Banco Best.

Independentemente da forma como o Estado entrega dinheiro às pessoas, o economista salientou que “estamos claramente numa situação dessas”, em que é preciso haver alguém que atire dinheiro às pessoas de helicóptero. “Estamos a passar por uma crise de liquidez” com especial incidência nas empresas.

“No caso em concreto, o problema das empresas – e a maior parte das medidas tomadas até agora não servem rigorosamente para nada – é que vão ter dificuldade em pagar os salários de março e em pagar principalmente os salários de abril.  Não se pode pedir às empresas que se endividem para pagar salários. Uma empresa não se pode sacrificar, depois de uma crise de três ou quatro meses, com milhões de euros em dívida, para pagar salários porque nunca vai conseguir recuperar”, alertou.

Na Europa, já foi anunciado um extenso leque de medidas para mitigar os impactos negativos da Covid-19 na economia. O Conselho dos Governadores do Banco Central Europeu (BCE) frisou que fará “tudo o que for necessário no âmbito do seu mandato” para enfrentar a crise económica que teve origem numa crise viral. E o BCE disparou a ‘bazuca’, anunciando a compra de 750 mil milhões de euros em ativos do setor público e privado em 2020.

Ontem, três dias depois da recomendação da presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, em reunião do Ecofin, os ministros das Finanças da União Europeia concordaram em ativar a cláusula de derrogação do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) que obrigam os Estados-membros a não terem um défice acima de 3% do seu PIB “para garantir que o choque permanece tão pequeno e limitado quanto possível e não cria danos permanentes às nossas economias e, consequentemente, à sustentabilidade das finanças públicas no médio prazo”.

Na Alemanha, o governo aprovou ontem um pacote de 750 mil milhões de euros para apoiar a economia, que inclui um aumento do endividamento público em 156 mil milhões de euros para financiar despesas sociais adicionais e ajuda direta a empresas, o que corresponde a 4,5% do PIB alemão.

Por cá, o governo anunciou um pacote de 9,2 mil milhões de euros. A injeção de liquidez divide-se entre linhas de crédito no valor de 3.000 milhões de euros para as empresas e um alívio fiscal superior a seis mil milhões de euros –  5.200 milhões do lado fiscal e mil milhões em contribuições sociais.

Já Carlos Almeida explicou que lançar dinheiro na economia de helicóptero “é um equilíbrio difícil de fazer” porque nem todos precisarão da mesma quantidade de dinheiro, nem ao mesmo tempo. “É importante dar apoios, a questão é saber onde é que estão os critérios para esses apoios”.

Dinheiro lançado do helicóptero? “Não há almoços grátis”

Para o economista, a solução viável durante a pandemia da Covid-19 coloca “o Estado a assumir o pagamento dos salários”.

“Se o Estado for dar dinheiro às pessoas ou, se como fez a Dinamarca, pagar 75% dos salários que as empresas pagaram em fevereiro, isso é helicopter money. As empresas pararam, não vai ser possível as economias pararem com as pessoas em casa se não houver rendimento. Ou há um mecanismo de fazer chegar liquidez às pessoas, assumindo que esse dinheiro é distribuído de forma total, distribuído de ‘borla’, ou vamos ter um problema”, vincou.

Alertou, no entanto, que a solução não é isenta de riscos. Desde logo porque, associado ao conceito de lançar dinheiro do helicóptero “está a visão de que as pessoas têm de que o dinheiro não tem valor. A distribuição de helicopter money tem de ser muito cautelosa porque as pessoas não podem ter a noção de que este dinheiro é inflação futura, dinheiro que não tem valor. Por exemplo, [pense-se no que] acontece nas hiperinflações”.

Mas adiantou que na situação atual não haverá esse perigo porque “nada disto é inflacionário porque está a assistir-se a uma destruição do lado do trabalho”.

O economista defende “uma coisa muito simples” que envolve a assunção da dívida por parte do BCE. O Estado continuaria a pagar uma percentagem dos salários, mantendo o capital circulante (working capital) das empresas. “A dívida que surgisse teria de ser sindicada na Europa – de forma igual por todos os países europeus – e era comprada pelo BCE, para depois ser anulada”.

O dinheiro seria dado diretamente às pessoas e seria pago através da emissão direta de moeda propriamente dita ou através de assunção de dívida. “Como contrapartida dessa criação de moeda, vai existir dívida. Portanto, o BCE daria dinheiro às pessoas e compraria dívida, que a colocaria no seu balanço”, explicou o economista.

E quem paga essa dívida? É neste ponto que os dois especialistas adotam visões antagónicas. Carlos Almeida, do Banco Best, tem uma visão smithiana da economia. “Não há almoços grátis”, reconheceu, aludindo à célebre frase do economista Adam Smith. “Quem vai pagar a dívida é o Estado, através da receita impostos”, realçou o diretor de investimentos do Banco Best.

“Uma coisa é o ministro das Finanças, Mário Centeno, ir buscar ao bolso e dar dinheiro e não emitir dívida. Mas, a ser emitida, ela será emitida em algum lado. A não ser que, depois, a União Europeia queira emitir um plano de dívida completamente distinto e depois há uma mutualização [da dívida], mas que terá de ser paga alguma vez na vida. O que se está a tentar fazer agora é minimizar os impactos no curto prazo, mas a médio ou longo prazo, haverá um momento no tempo onde haverá necessidade de desembolsar essa dívida. Há aqui quase que uma antecipação de rendimentos – neste caso, um crédito que é dado às pessoas – mas que depois no final esse valor vai ter que ser pago alguma vez no tempo.”, prosseguiu Carlos Almeida.

No seu cenário delineado, o economista frisou que “a dívida [assumida pelo BCE] não precisa de ser paga”. “Se o BCE fizer um write-off total dessa dívida, o dinheiro que foi lançado na economia, não vai criar pressões inflacionárias nem vai pôr em causa a credibilidade do BCE, desde que isto não seja para sempre, como é óbvio”, ressalvou.

‘Corona bonds’: uma solução para a UE sobreviver?

Há, no entanto, algo em que os dois especialistas concordam. Até certo ponto, a pandemia da Covid-19 é um atestado à sobrevivência da UE porque “todos os países serão afetados da mesma forma”. A resposta pode passar pela emissão dos chamados ‘corona bonds’, isto é, emissão de dívida europeia para fazer face ao impacto económico do vírus, uma solução que, de resto, foi apresentada pelo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, também conhecida como ‘eurobonds’.

O diretor de investimentos do Banco Best considerou que “estamos num momento sem precedentes e em que são necessárias medidas sem precedentes”. A política monetária deve ser reforçada com política orçamental. “O que falta agora é a componente orçamental que terá de ser muito forte e rápida. E essa é a minha dúvida: como é que conseguirá ser rápida e forte”, frisou Carlos Almeida.

“Do lado da zona euro, eu diria que vai ser necessário haver mais coordenação. Nas eurobonds é preciso perceber qual é o contexto e o processo decisório da UE para as conseguir emitir. Eu acho que o maior sinal está dado, que é a receptividade da Alemanha, para fazer algo que nunca antes foi feito. Era um sinal importante e mutíssimo forte. O BCE também já disse que ia fazer tudo o que for possível. O mais importante é haver uma coordenação de medidas para evitar a desfragmentação da UE, que seria a pior coisa a acontecer”, alertou Carlos Almeida.

O economista pronunciou-se na mesma linha, salientando que a UE tem de encontrar respostas coordenadas através das ‘corona bonds’.

“Ou a UE, nesta crise, encontra uma solução para revitalizar a economia com as ‘corona bonds’ – não vejo outra solução – ou então uma das vítima do coronavírus na Europa vai ser a própria UE. Porque se a UE não serve para resolver estes problemas, os países vão ser empurrados para fora da UE”, concluiu.

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