[weglot_switcher]

“Rabo de Peixe”. Autarquia convicta de que série é uma “oportunidade”, mas comunidade está reticente

Há quem esteja preocupado. O rabopeixense Rui Tavares diz que a série até pode ser benéfica para a ilha, mas que terá “efeitos negativos” na vila com a propagação de receios e dúvidas. A socióloga Piedade Lalanda acredita que perpetuará preconceitos e a agente cultural Aurora Ribeiro questiona o “deslumbre generalizado” com as produções da Netflix e urge à reflexão.
31 Maio 2022, 06h40

“Nada acontece na pequena localidade açoriana de Rabo de Peixe, até que uma tonelada de cocaína chega à costa, mudando por completo a vida dos seus habitantes” é o mote da nova série da Netflix, “Rabo de Peixe”, que será “inspirada livremente em factos reais” que remontam a 2001. A “aventura perigosa e sem retorno” será gravada em vários locais do arquipélago dos Açores e tem deixado a comunidade dividida.

“A autarquia vê isso como uma oportunidade e não como uma ameaça”, disse o presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, Alexandre Gaudêncio, sobre a produção da Netflix, que, na sua opinião, “tem uma abrangência internacional muito positiva”.

“Desde a primeira hora, conversando com os produtores e com quem escreveu o guião, Augusto Fraga — que é um açoriano de gema que conhece perfeitamente as nossas ilhas — temos todas as certezas e a garantia que no final será passada uma boa imagem da nossa terra. É essa a nossa convicção”, acrescenta.

Numa reunião com a produtora que aconteceu sobretudo por questões logísticas, a autarquia demonstrou a preocupação com a imagem passada com a série, disse Gaudêncio. “Foi-nos dada a garantia de que a produtora tem a convicção de deixar uma boa impressão pelos sítios onde passa. Os próprios atores e a produtora estão a ser muito bem recebidos pela comunidade global”, assevera.

Contudo, há quem esteja preocupado com a série. O rabopeixense Rui Tavares, que é também coordenador da Associação de Desenvolvimento Comunitário VidAçor, diz que a série até pode ser benéfica para a ilha, por transmitir as paisagens naturais, mas que terá “efeitos negativos” na vila. “Rabo de Peixe servirá de engodo para trazer pessoas à ilha, mas não à Vila devido aos medos, receios e dúvidas provocadas pela série”, resume.

Em relação ao conteúdo da produção, e aludindo ao excerto do guião que foi divulgado nas redes sociais que, segundo o residente, parece ter por base o artigo do “El País” de 2017 — o qual relata episódios “de crianças a usarem cocaína para marcar as linhas do campo de futebol, e cujas avós cortam droga numa linha de montagem e os avôs escondiam a droga dos traficantes para troca de dinheiro para almoço” —, Rui Tavares declara que só pode ter “enquadramento no campo da ficção”.

“Propagar que as crianças de Rabo de Peixe brincaram no meio da cocaína e viviam em ambientes familiares impregnados de cocaína é transmitir ao mundo um juízo de valor indigno de uma comunidade laboriosa, guerreira, criadora de grandes personalidades nos mais variados campos da vida humana”, frisa.

O autarca está convicto que o excerto “não é, de maneira nenhuma, o guião final porque trata-se de uma série com vários episódios, e não se pode restringir a duas ou três páginas que foram divulgadas na internet”.

Não obstante, a agente cultural Aurora Ribeiro, residente nos Açores, diz que o “problema é que a história é estruturada em redor da série de fábulas e anedotas que floresceram a partir de um facto real e que só existem porque se baseiam em preconceitos muito fortes e estigmatizantes em relação a uma comunidade específica. Nesse sentido eu diria que o plot da história parte de um mau princípio, independentemente do fim a que venha a chegar”.

Sublinhando os complexos problemas que enfrenta a população de Rabo de Peixe, Aurora Ribeiro salvaguarda que a série, nos moldes que apresentou, “corre sérios riscos de vir a agravar essa visão depreciativa de um lugar, mesmo que aos protagonistas da série se lhes destine uma história de superação e emancipação”.

A socióloga Piedade Lalanda observa que, “considerando a representação social que o país tem desta comunidade piscatória, uma série que se intitula Rabo de Peixe e que trata este acontecimento “extraordinário” irá, quase de certeza, reforçar a faceta negativa que ainda hoje é associada à população local”, em torno do consumo de estupefacientes, mas também da pobreza, baixa escolarização e alcoolismo. Essas realidades, salvaguarda, “têm sido objeto de inúmeros projetos de intervenção social e que, em alguns casos tem procurado derrubar esses estereótipos e introduzindo mudanças significativas”.

A também coordenadora do Projeto EFTA com sede em Rabo de Peixe destaca que essas as ações sociais acabam por se ver anuladas “perante reportagens, artigos jornalísticos e agora uma série, quando apenas se traz para a ribalta os problemas e não as soluções, se fala de pessoas marcadas por comportamentos negativos e não se exaltam os que superam, vencem e ultrapassam”.

Mesmo em relação à imagem positiva que pode advir para a ilha, a investigadora diz que “os Açores têm procurado construir um produto turístico assente na importância da região como “ilhas natureza”, lugar de turismo saudável”, pelo que o que interessa menos ao arquipélago “é ser associado a um “paraíso” da droga”.

“É evidente que a Netflix pode ter liberdade criativa para escrever e filmar as histórias que entender. Mas a comunidade cultural e artística e os visados pela história também têm toda a liberdade para refletir e criticar uma série como esta. Esse debate será benéfico para todos. Mas, por enquanto, parece haver um deslumbre generalizado, a nível nacional e a nível local com a marca Netflix que está a impedir que se reflita nas questões que são verdadeiramente fundamentais”, acrescenta Aurora Ribeiro.

Questionado sobre as vozes contestatárias à série dentro da comunidade, o presidente da Câmara da Ribeira Grande diz que pode estar em causa aproveitamento político. “Está-se a criar uma tempestade num copo de água por algumas pessoas que, na minha opinião pessoal, politicamente estão a tentar ganhar partido com isto. Mas não faz qualquer sentido”, defende.

Até ao momento da publicação deste artigo, o Jornal Económico não recebeu declarações do Presidente da Junta de Freguesia de Rabo de Peixe, Jaime Luís Melo Vieira, sobre o mesmo tema.

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.