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Saúde mental: crise na habitação provoca maior procura por psicólogos

O psicólogo especialista em temas sociais, de educação, do trabalho e das organizações Tiago Pereira admite que a crise na habitação é indivisível de outras crises que afetam os portugueses. Alerta para os efeitos prolongados e não imediatos das crises na saúde mental e confirma que os temas da habitação surgem cada vez mais nas preocupações dos pacientes.
27 Maio 2023, 08h00

Artigo originalmente publicado no caderno NOVO Economia de 20 de maio, com a edição impressa do Semanário NOVO.

Tiago Pereira, membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), faz a radiografia dos efeitos da crise da habitação na saúde mental dos portugueses. Em entrevista ao NOVO Economia, fala do stress habitacional de quem perde uma casa ou não tem acesso à habitação e da precariedade habitacional. E alerta: a entrada dos jovens para uma primeira habitação é um problema significativo.

Quais são os impactos psicológicos que uma crise habitacional pode ter?
Os impactos podem ser bastante significativos e dependem muito daquilo que é a dimensão do que se possa falar em termos de uma crise. A primeira nota relevante é a ligação que a crise na área da habitação tem com outro tipo de crises, nomeadamente as questões da natalidade, do emprego, da fixação nos territórios e do rendimento. São questões muito ligadas a uma dimensão de alguma segurança, controlo e previsibilidade, que são elementos absolutamente estruturantes para aquilo que é a questão da saúde mental. Especificamente nas questões da habitação, há duas notas que estão muito relacionadas com problemas de saúde mental: a primeira está relacionada com a inacessibilidade, ou seja, com as pessoas sentirem que não têm acesso à habitação e à habitação no local onde desejariam ter, e isso está muito relacionado com fenómenos como o stress, a ansiedade e a depressão.

Que são muito prevalentes em Portugal.
São muito prevalentes em Portugal e relacionam-se com um conjunto de fatores. As crises económicas e a crise da habitação estão, com certeza, entre eles. E, depois, há uma outra dimensão, que é a precariedade habitacional, que são pessoas que acedem à habitação mas que essa habitação é, de certa forma, precária por diversos fatores. As pessoas que vivem em precariedade habitacional estão também muito expostas a situações de ansiedade e stress associadas a esses problemas que, depois, se conjugam numa dimensão de problemas de saúde mental.
Em todos os indicadores internacionais, as questões associadas ao bem-estar e à qualidade de vida têm sempre como um dos fatores preponderantes a qualidade habitacional e a dimensão habitacional. Isso é um ponto relevante.

Como é que a pressão financeira relacionada com a habitação pode desaguar na saúde mental dos portugueses?
Esse é um fenómeno mais recente mas, objetivamente, isso tem acontecido, ou seja, há hoje (…) mais situações que são reportadas relativamente a questões associadas à habitação e, às vezes, elementos muito específicos que não temos bem presentes. Por exemplo, um dos fatores que condicionam muito as questões da saúde mental é a nossa adaptação a acontecimentos de vida, a situações que nos acontecem. Em muitas situações, a habitação dificulta esses processos, pelo que não permite uma adaptação de uma forma tão equilibrada. Isso pode gerar problemas na área da saúde psicológica que podem, depois, redundar em problemas mais significativos.

Não entra aí a questão da falta de um espaço nosso, a ideia de que estamos a viver em certos lugares a prazo, que nunca são verdadeiramente nossos?
Era mesmo aí que ia chegar. Entra a ideia da diferença entre ter uma casa e um lar, entre estar num espaço que é de transição, que não sentimos como nosso, e um outro que nos traz outra segurança, outro sentido de pertença, outra possibilidade de criar relações, que são elementos absolutamente essenciais para a proteção da saúde mental. Isto é mais significativo em pessoas que já têm predisposição para questões associadas à saúde mental e pode levar, no limite, a desenvolver mesmo uma perturbação.

Como classifica a ação  governativa nesse sentido? Por exemplo, o governo espanhol garantiu a entrada para compra de habitação à população jovem.
Essa é uma medida. Outros países têm um parque habitacional público muito mais significativo que, depois, permite priorizar determinados grupos populacionais. Há um conjunto de medidas até estudadas que é importante que olhemos para elas. Há algum unanimismo na nossa sociedade relativamente ao facto de termos estado demasiado tempo sem atuar sobre este problema. O estarmos a discutir já é um ponto importante. A entrada para uma primeira habitação é um problema significativo e é um problema de pressão muito forte numa população já muito impactada por problemas de saúde mental que tem que ver com a população jovem.

No último ano vimos aumentar o número de portugueses a entregarem as casas aos bancos. Tem havido algum aumento de procura de ajuda profissional por parte dos portugueses decorrente deste fenómeno?
Sim. A habitação começa a surgir cada vez mais significativamente em termos das preocupações. Há hoje uma procura muito mais significativa, também ao nível dos cuidados de saúde primários, de consultas de psicologia, algo que tem dificultado ainda mais o acesso dos portugueses, que já era bastante desigual. As questões associadas à precariedade económica, à segurança económica, à precariedade habitacional e à insegurança habitacional surgem como prevalentes.

A OPP tem dito que o Serviço Nacional de Saúde não tem psicólogos suficientes. Tendo em conta essa insuficiência, como ficam os portugueses?
É uma óptima questão para nos projetar não apenas para o presente, mas para o futuro. É importante que tenhamos sempre presente que chegámos ao período pré-pandemia com problemas muito significativos na saúde mental em Portugal também porque alguns anos antes tínhamos vivido uma grave crise socioeconómica. A crise não tem impacto apenas naqueles anos em que decorre. Nessa crise, houve muitas pessoas que ficaram em situação muito precária e em situação de desemprego. Aqui acontece exatamente o mesmo: por cada família que perde a habitação, porque não a consegue pagar, todos esses impactos não se veem apenas nas semanas seguintes. Eles têm um impacto e um delay temporal muito significativo. É importante olharmos para isto com medidas, de certa forma, remediativas – ou seja, de apoio às pessoas que já estão nesta situação –, mas também com medidas preventivas. Um Estado a investir significativamente na melhoria ou na minimização dos problemas da habitação é um Estado que está a investir na sua economia e na manutenção das pessoas no país, nomeadamente da população mais jovem.

Como avalia as medidas que estão neste plano Mais Habitação?
Eu diria que a nossa crítica tenta ser e procura ser construtiva, porque parte deste pressuposto de que há um foco neste problema, que é identificado como sendo um problema com dimensão significativa no país. Isso estava um pouco ausente do debate público e é importante para mobilizarmos não apenas o Governo, mas a sociedade.

Se formos ver, há uma crise em todo o lado.
Sim. Não há uma crise, provavelmente, no turismo.

Mas há uma crise na vida pessoal dos portugueses?
Há uma crise. Há um desequilíbrio entre aquilo que é a expectativa do que nós poderíamos ter em termos de qualidade de vida e de bem-estar e aquela que estamos a conseguir. Há uma expectativa entre uma maior distribuição daquilo que é a riqueza que o país, ainda assim, vai conseguindo criar e aquela que nós estamos a conseguir. Com certeza que isso existirá.

Há uma crise de expectativas?
Há uma crise de expectativas, que é uma crise justa, no sentido de nós querermos melhor para a nossa vida, e todas as crises que acabou agora de mencionar são crises que, basicamente, estão conectadas umas com as outras. E essa é que é a ideia da policrise: todas as nossas dimensões pessoais afetam a nossa dimensão de contributo. Temos um espaço habitacional muito degradado, com muitas dificuldades, problemas de liberdade, que causam problemas de saúde mental, e deveria estar presente num pacote que se chama Mais Habitação.

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