Soube-se recentemente que a famosa actriz Scarlett Johansson decidiu vir viver para Lisboa. Por coincidência, assim começava um sonho que tive aí por volta de 2004 ou 2005, quando a rapariga se celebrizou.

O que se passava a seguir é algo que o pudor e as normas desta publicação me impedem de descrever em detalhe, mas escusado será dizer que se tratava de um cenário tão fantasioso e irrealista como o país onde Johansson escolheu ter a sua residência fiscal, que não é o mesmo onde eu ou o leitor temos a infelicidade de viver.

Como outras celebridades mais ou menos milionárias – Eric Cantona, o casal Fassbender-Vikander (cuja segunda metade também me custa visitar ao atravessar a porta de marfim de onde, segundo dizia o outro senhor que talvez nunca tenha existido, os sonhos não proféticos surgem), a senhora dona Madonna – e gente que fez fortuna pelos mais variados e por vezes obscuros meios em outros países que não este, Johansson escolheu vir para Portugal para beneficiar das excelentes vantagens que o Estado português oferece aos seus “residentes não habituais”.

Por um período de dez anos, os seus rendimentos gerados noutros países gozam de uma redução nas taxas de IRS que pagam ou, se forem reformados, estarão completamente isentos dessa chatice que, segundo o ditado, seria tão inevitável como a morte (contra esta, nem uma cunha nos partidos do poder pode fazer o que quer que seja). Enquanto isso, o comum “residente habitual” paga cada vez mais impostos todos os anos e, se tiver azar, vê a Autoridade Tributária a abusar do seu poder para lhe cobrar indevidamente ainda mais.

No fundo, Scarlett Johansson é como a Autoeuropa: só veio para Portugal porque os governos nacionais lhe oferecem condições que recusam a todos os outros que fazem a sua vida neste país. A presença da Autoeuropa em Portugal, bem como a das celebridades hollywoodescas ou dos oligarcas russos, chineses e angolanos, e os proveitos que o país recolhe de consigo trazerem investimentos e riqueza, são inegáveis, mas só são possíveis porque o Estado português os convida a viver fora da lei que impõe aos restantes.

Os benefícios oferecidos a milionários estrangeiros – ou a investidores externos, ou aos “campeões nacionais” portugueses – mais não são que um reconhecimento implícito e envergonhado de que as condições em que todos os restantes habitantes deste pobre e triste rectângulo são obrigados a viver não são convidativas para ninguém, e que só criando um país paralelo, inacessível ao comum dos portugueses ou emigrantes instalados em Portugal, se pode aliciar alguém com alternativas a escolher para cá vir.

O problema, obviamente, não está no facto de pessoas como Johansson serem estrangeiras – pessoalmente, acho que tudo o que torne Portugal um bocadinho menos português só pode ser positivo – nem sequer nas condições que lhe são oferecidas. O problema está nas condições a que os residentes “habituais” – indígenas e estrangeiros – continuam a ser condenados, e na escolha política que se esconde atrás dessa disparidade.

Por reconhecerem que o sistema fiscal português é um autêntico inferno, os governos portugueses de todas as cores criam um paraíso para aqueles cujo dinheiro ou actividade desejam atrair. Por saberem que precisam de alimentar as extensas clientelas que dependem do Orçamento do Estado e de que eles próprios não dependem menos, os partidos que se vão revezando em São Bento sabem, também, que o tal inferno precisa de ser imposto aos que não têm a sorte de terem amigos no Rato ou na Lapa, nem de terem feito filmes em Hollywood, pois sem isso não terão onde sacar o recheio do festim orçamental que garante a sobrevivência dos que, por sua vez, garantem a sua.

Ao contrário do que infelizmente se tornou moda dizer e pensar, não vejo qualquer mal em que cada vez mais estrangeiros escolham Lisboa para visitar ou viver, muito menos que consigo tragam (e gastem) o dinheiro que muita falta cá faz. Mas vejo mal (e muito) em que, ao mesmo tempo, se mantenha um sistema que só faz com que os que cá nasceram e vivem queiram ir para outro sítio.

 O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.