Estive afastado da China durante três anos, desde Janeiro de 2020. Durante a pandemia, utilizei a videoconferência como toda a gente, mas não é a mesma coisa. Voltei agora a Pequim, à espera de reencontrar um país que conheço bem há já uma década, mas o mundo mudou, e a China não foi excepção. É o que quero partilhar hoje.

Parece-me ser relativamente consensual o papel fundamental que as tecnologias de informação (TI) tiveram durante a pandemia em manter a comunicação entre as pessoas, os colaboradores das empresas, e as próprias empresas com os seus consumidores. Aconteceu em todo lado, e o chamado novo normal passou a contar com a utilização acrescida dessas mesmas tecnologias.

Por exemplo, quantas são as reuniões que não implicam deslocação para que possam ter lugar, dentro e fora dos locais de trabalho? Isto não quer dizer que tivéssemos ficado totalmente dependentes da tecnologia – se nos esquecermos do telemóvel em casa, não deixamos de andar de transportes públicos, ir ao cinema, comprar o jornal, consultar o menu de um restaurante e pagar a refeição. Pois bem, na China isso já não se verifica, pois a tecnologia passou definitivamente a primeira necessidade.

Se eu próprio conhecia bem a vida na cidade de Pequim e fiquei extremamente surpreendido, admito que a maioria das pessoas possa não ter noção do que se está a passar por lá e das implicações que isso possa ter para nós. Aliás, a China só abriu as fronteiras exactamente um mês antes do momento em que escrevo este artigo, e os turistas ainda não são permitidos. Só se viaja para a China com carta-convite bem fundamentada, e os aviões ainda vão quase vazios.

Cheguei a Pequim à hora do almoço e como tenho imensa dificuldade em encontrar restaurantes chineses minimamente aceitáveis para a capacidade que eu tenho de comer coisas invulgares, escolhi o McDonald’s do costume. Tal como por cá, a encomenda passou a ser realizada por meios tecnológicos, através dos totens interactivos. Porém, como o restaurante deixou de aceitar pagamento com cartão, seja ele qual for, não pude fazer a encomenda.

Fiquei admirado que uma empresa americana não aceitasse um cartão VISA como meio de pagamento, como sempre acontecera até há três anos. Lá consegui encomendar de forma tradicional e o pagamento em dinheiro foi difícil por falta de fundo de maneio. Claramente, naquele ponto de venda, já estavam desabituados de usar o dinheiro físico.

Mas, mais interessante, foi a experiência noutros restaurantes, pois, como deixaram todos de ter menu físico, tudo se passa agora pela leitura de um QR Code. O problema é que, para encomendar seja o que for, tem de estar previsto um meio de pagamento, pois a leitura desse QR Code não abre um qualquer endereço da web ou uma qualquer aplicação no smartphone, e só funciona se for lido por super app, na maioria das vezes o WeChat.

Ora, qualquer pessoa pode usar o WeChat para aceder ao menu (em Mandarim) mas não fazer a encomenda sem o referido meio de pagamento. Tiveram de ser os colaboradores dos restaurantes a utilizar o seu próprio WeChat para fazer a encomenda em seu nome e o pagamento em dinheiro foi igualmente difícil.

A seguir voltei para o hotel de metro. Pois bem, sem super app não se consegue comprar o bilhete. É que mesmo as máquinas ultra-sofisticadas com ecrã táctil devidamente traduzido, obrigam a uma identificação do comprador antes de passar à fase da venda do bilhete, a qual, em qualquer dos casos, tem de ser executada com um QR Code. E o mesmo acontece com o aluguer de bicicletas.

No meu caso, ainda consegui que me emprestassem um cartão de dados, pois como estrangeiro não consegui que a China Mobile activasse um em meu nome (o sistema deu tantos erros que eles desistiram). A única super app que consegui configurar foi o Alipay — e o problema é que só funciona com um dos quatro fornecedores de bicicletas (e também não me resolveu o problema dos restaurantes).

O meu ponto é o seguinte: só é possível sobreviver em Pequim, provavelmente também nas outras grandes cidades, no dia a dia, se estivermos ligados em tempo real à Internet através de uma super app totalmente configurada, e devidamente identificados. Isto origina, naturalmente, uma leitura quanto ao sistema político, mas também tem profundas implicações estratégicas e económicas, cuja reflexão partilharei aqui oportunamente.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.