“Até que ponto é necessário regular os activos digitais? Como controlar os riscos inerentes à tecnologia blockchain sem limitar projectos inovadores? Como reduzir o risco das transacções ilícitas sem restringir de forma injustificada as liberdades públicas? Como regular as empresas europeias sem reduzir a sua competitividade relativamente aos seus concorrentes internacionais?”

Estas perguntas não são minhas, nem foram colocadas por nenhuma instituição portuguesa. Fazem parte do relatório nº 4753 publicado Dezembro passado na Assembleia Nacional Francesa, e mostra bem a justa preocupação dos legisladores gauleses em dar largas a todo o potencial da auto-execução ecossistémica possibilitada pela blockchain. Será que estão no caminho certo? E por cá, será que ainda vamos a tempo e podemos fazer melhor?

O seu impacto nas actividades económicas que resulta da evolução tecnológica é um assunto muito sério. Ao contrário do que, volta e meia, se ouve dizer por aí, a legislação tem de estar a par com a economia, pois tudo é direito. Esperar pela evolução tecnológica para depois legislar é um erro indesculpável. Além disso, para se compreender uma tecnologia é preciso exercitá-la, pois não basta ouvir falar das coisas para as compreendermos verdadeiramente.

É por isso que os franceses têm vindo a experimentar a blockchain com um sucesso inegável. Não fazer nada, significa não cometer erros, é certo. Porém, não será esse o maior dos erros?

Não foi por acaso que o BIS – Bank of International Settlements, considerado por muitos o banco central dos bancos centrais, seleccionou o Banque de France e o Banco Nacional Suíço para experimentar liquidações transfronteiriças (cross-border settlements), tanto de moeda, como de papel comercial, com wCDBC (o “w” significa wholesale e CBDC Central Bank Digital Currency).

A razão da escolha é clara: França já regulou o mercado dos Tokens em 2019 (nota: os franceses são giros, pois traduzem Utility Tokens como fichas de serviço), incluindo os ICO, e a Suíça também já licenciou a tokenização de activos na forma de Utility Tokens. Já no resto da Europa, a maioria dos países está à espera da publicação do MiCA, o que ainda vai demorar (para além de pouco vir a adiantar, como já aqui defendi).

Interligar dois bancos centrais através de criptoactivos é muito interessante porque abre o caminho à transferência de valor entre espaços económicos com base na auto-execução ecossistémica, seja das actuais moedas fiduciárias, seja do papel comercial, podendo evoluir também para os criptoactivos à medida que estes forem sendo aceites pelos respectivos ordenamentos jurídicos.

Ou seja, esta experiência franco-suíça com uma wCDBC traz água no bico, pois o que está em causa é muito mais que a tradicional compensação/liquidação entre bancos centrais, esperando-se que, um dia, as economias não tenham de passar por sistemas RTSG (Real Time Gross Settlement) como o TARGET2.

A diferença é abismal, pois um RTSG é um sistema transaccional de passagem de informação entre bancos centrais, enquanto a programação do dinheiro através de CDBC vai dar corpo a activos financeiros com vida própria. Aliás, a proposta UPC da VISA está já desactualizada quanto ao que muitos bancos centrais estão hoje a congeminar, precisamente por faltar a programação do dinheiro. É que a tokenização de activos só funciona sobre uma camada de dinheiro programado, e é isso que vai ter implicações económicas para além da nossa imaginação, dando corpo a uma 4ª Revolução Industrial assente em wCDBC a suportar criptoactivos descritos na CDBC de cada espaço económico.

Claro que há outras possibilidades técnicas para esta revolução, tal como passarmos todos a viver no Metaverso do Facebook e usar o Diem como base de todas as economias… (nota: esta última frase é para ler com um tom fortemente irónico e com sorriso amarelo a condizer).

França e Suíça iniciaram assim a adopção da auto-execução ecossistémica com os Utility Tokens, sendo estes apenas um primeiro e pequeno passo no sentido da tokenização das suas economias. São exemplos que nos inspiram com uma primeira imagem do que virá a ser a 4ª Revolução Industrial, com uma arquitectura coerente de conceitos que incluirá a loucura recente dos NFT, os Security Tokens (titularização de activos na blockchain), as CBDC (como o euro digital) e a tokenização de outros direitos, incluindo activos reais.

Aprender com a França e fazer melhor

Portugal também deve avançar na adopção destes conceitos da forma economicamente mais profícua possível. Estar à espera de transpor as leis europeias só porque sim, sem participar activamente na sua discussão, nem utilizar o espaço de manobra legislativo para beneficiar a nossa economia, é acreditar que as decisões do centro da Europa não vão beneficiar os países mais centrais, nem privilegiar as economias de escala. Então o que estão os gauleses a fazer? O que podemos aprender com eles e como podemos fazer melhor?

França terá sido dos primeiros países a permitir, já em 2017, a desmaterialização de activos financeiros na nova tecnologia auto-executável, mas legislaram de uma forma semelhante ao que já hoje é feito com as tecnologias tradicionais. No entanto, não deixou de ser um pequeno e significativo passo, pois, apesar de não explorar todo o potencial da auto-execução ecossistémica, permite experimentar a blockchain.

Além disso, avançar com uma primeira diligência compatível com a legislação actual faz todo o sentido. Porém, será essa mesma compatibilidade a não deixar voar o potencial disruptivo da blockchain, o que indicia alterações subsequentes bastante mais profundas, daí o envolvimento da Assembleia Nacional gaulesa no processo.

Olhando para o referido relatório, dá para perceber que não é isento de imperfeições, o que é, afinal, bom para nós enquanto competidores. É compreensível a dificuldade que o legislador possa ter em compreender ao mesmo tempo a nova tecnologia e o seu potencial económico. Por exemplo, quem poderia antever nos anos 90 que o desenvolvimento estrondoso das Big Techs só seria favorável aos EUA, no plano internacional, e à China no plano nacional. Aliás, é quase estranho como é que a França se deixou ultrapassar pelo uso da internet nos anos 90 quando era a vencedora incontestável das políticas tecnológicas das comunicações nos anos 80 (com o Minitel em particular).

Enfim, tal só não é totalmente estranho porque o ambiente competitivo das comunicações nos anos 90 já era global e, para vencer, precisaríamos de uma coordenação em bloco das políticas que vieram a ser lançadas pela União Europeia na década de 2000.

Tivesse a Europa antecipado essa visão em dez anos, e a história da internet poderia ter sido uma outra completamente diferente. Era possível? Se era! Os EUA deram esse passo clara e publicamente no final dos anos 80, pelo que bastaria apenas copiar. Tudo isto para dizer que as estratégias públicas relativamente à tecnologia são um assunto tão sério quanto a sobrevivência económica de cada espaço geopolítico. Ora, o impacto da tecnologia, volvidos 30 anos, é extraordinariamente maior. Será preciso dizer mais?

O Banque de France aproveitou a legalização dos Utility Tokens para experimentar a tokenização de activos financeiros e a liquidação (settlement) de papel comercial (corrente) com base na sua CBDC experimental. Repare-se a importância da existência de uma CBDC para que tal seja possível, mais uma vez demonstrando o valor de uma massa monetária em forma de criptomoeda do lado da economia, mais do que simples meio de pagamento.

O caminho é, portanto, claro: mais do que aumentar a eficiência do sistema financeiro, será a tokenização de outros activos que não apenas os financeiros, a beneficiar toda a economia. E França já está a pensar a testar esse caminho quando nós ainda nem começámos a discuti-lo. Porém, assumindo que vai acontecer, como é que podemos fazer melhor?

Os erros dos gauleses trazem ensinamentos

Sabendo que não há inimigos mais perigosos que os nossos próprios pressupostos, não sendo gauleses, também não temos de nos limitar por nenhum chauvinismo em particular. A visão gaulesa tem erros que podemos aproveitar, e o primeiro deles está na preocupação com os impostos. França está a olhar para os actores dos novos ecossistemas como simples extensões da desmaterialização que as economias têm vindo a sofrer há décadas. É um erro, o que para nós pode ser bom, pois o aumento de impostos no estrangeiro vai levar mais empresas inovadoras a desembarcar em terras lusitanas (enfim, desde que ninguém se lembre de cometer o mesmo erro por cá, com mais impostos, taxas e sobretaxas).

O segundo erro da visão gaulesa (do lado do legislador) está na própria definição de criptoactivo, pois considera-o como activo digital na linha do que já existia fora da blockchain. Ora, isto está pura e simplesmente errado. A blockchain tem vida própria e o que vai fazer a diferença é precisamente a propriedade de autoexecução aplicada aos activos que puder legalmente abarcar. Esquecê-lo na própria definição primordial, na qual assenta toda a arquitectura, é desenhá-la com pés de barro.

É um erro imperdoável que podemos aproveitar a nosso favor (nota: o MiCA padece do mesmo erro, sendo essa uma das razões que torna a lei inconsequente). Pior ainda, o conteúdo dos activos digitais assim definidos pela lei gaulesa é limitado no sentido em que apenas considera Utility Tokens como repositórios de valor. Ficam assim de fora todas as valências do direito aplicadas aos activos financeiros tradicionais, incluindo todo o tipo de titularização.

Nem a potencial adopção dos Security Tokens os poderá salvar, pois está limitada pela definição de activo virtual acima referida. Mais ainda, se nem os activos financeiros natural e facilmente desmaterializáveis podem ser fielmente tokenizados com base na definição francesa de activo virtual, que dizer de todos os outros que fazem girar a economia? Mas será que alguém se lembrou de traduzir smart contracts em francês? É que o mundo não se pode representar apenas por jetons essencialmente inertes! (nota: os franceses referem-se aos Tokens como jetons).

É devido ao erro primordial acima referido que os franceses se preocupam tanto em definir os serviços de suporte aos activos digitais, associando-os a pessoas jurídicas numa estratégia de representação das novas realidades económicas à antiga francesa. Bom, afinal se é para ser à antiga, para que serve então uma nova tecnologia?

Não obstante, há uma luz ao fundo do túnel, pois os legisladores franceses têm a intenção de rever a lei dos prospectos (e.g., activos financeiros de elevado valor) para que seja capaz de abarcar Security Tokens (ou seja, para contemplar a titularização). Se o fizerem bem feito, já não vão poder considerar os criptoactivos apenas como simples reservas de valor. Porém, como é essa a abordagem prevista no MiCA, pode ser que não corrijam o erro (eu sei que não é bom desejar a desgraça dos outros, porém, uma vantagem competitiva só se consegue com a derrota do adversário).

O mais curioso é que os legisladores da Assembleia Nacional gaulesa ainda não ouviram as brilhantes mentes ligadas ao Banque de France, pois também consideram as CBDC como meio de pagamento, esquecendo-se assim da programação do dinheiro e do seu impacto na execução dos smart contracts que possam representar direitos reais.

São, portanto, imensas a possibilidades de fazermos melhor e ganhar a dianteira da inovação económica com base nas tecnologias auto-executáveis, saibamos nós aproveitá-las a tempo. Passará sempre pelos nossos legisladores com o apoio de instituições activas na regulação e incentivo à economia. Só falta deitar mãos à obra.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.