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Vítor Bento: “A economia acaba por sofrer as consequências da fiscalidade discriminatória sobre a banca”

O presidente da APB, Vítor Bento, em entrevista realizada antes da invasão da Rússia à Ucrânia que desencadeou um onda, sem precedentes, de sanções económicas, falou dos desafios da banca para 2022. A melhoria da rentabilidade é um dos maiores, porque sem isso a banca não financia a economia.
  • Cristina Bernardo
4 Março 2022, 12h27

O presidente da APB, Vítor Bento, em entrevista ao Jornal Económico realizada antes da invasão da Rússia à Ucrânia que desencadeou um onda, sem precedentes, de sanções económicas, falou dos desafios da banca para 2022. A melhoria da rentabilidade é um dos maiores, porque sem isso a banca não financia a economia. Vítor Bento é o entrevistado da edição de 2022 do “Quem é Quem no Sector Financeiro”, que será publicado na próxima edição do jornal.

Quais são os grandes desafios para a banca nacional este ano?

Obviamente que a fortificação do balanço, onde já foi conseguido um resultado assinável até aqui, e a rentabilidade são desafios que estão sempre em cima da mesa, e que ao longo deste ano se espera que atinjam, digamos, um estado de “normalização”. O processo de recuperação da crise financeira foi, de certa forma, interrompido pela crise pandémica, que introduziu outros desafios pelo meio, mas que também permitiu verificar, felizmente, que o ajustamento que a banca tinha feito já lhe permitiu ter um papel de grande relevo social durante esta nova crise, atuando como um forte amortecedor dos danos sociais e económicos da crise. Mas, para além destes desafios recorrentes, atualmente temos os desafios relacionados com a sustentabilidade. Não que o problema em si seja novo, mas o grau de consciência social sobre o problema ambiental subiu muito nos últimos tempos e as entidades reguladoras e de supervisão passaram a dar-lhe uma atenção maior. Este foco, bem como a aceleração da digitalização, com as alterações de processos e de relações sociais que acarreta, são as novas grandes linhas de desafios.

Como economista acredita que a subida da inflação é temporária ou é permanente? E que impacto pode ter nos juros?

Aquilo a que estamos a assistir é uma subida de vários preços, o que, só por si, não constitui inflação já que esta é a subida da contínua e sustentada do nível de preços. As subidas tanto podem representar um ajustamento de preços relativos entre vários sectores, produtos e serviços, um ajustamento pontual do nível de preços, ou o início de um processo recorrente de subidas, que, esse sim, será inflacionário. Neste momento, os analistas e as autoridades estão ainda numa atitude expectante, (nalguns casos talvez até com base no que gostariam que fosse o cenário). Mas há já indícios preocupantes. Uma parte desta subida decorre do choque da crise pandémica e do seu impacto nos circuitos económicos. Do estrangulamento das cadeias de valor, por um lado, e, por outro, do impacto dos estímulos à economia na procura e que a desfasou da capacidade imediata de reação da oferta, também ela afetada pelas restrições da pandemia. E ainda do desafio da digitalização, acelerado com a pandemia, e que tem criado escassez de trabalho qualificado nalgumas atividades. Mas, reitero, neste momento ainda estamos num cenário enevoado quanto ao problema. O que lhe pode dar a natureza inflacionária é se houver uma reação generalizada que desencadeie uma espiral de subida generalizada de preços e salários.

Até que ponto é que os bancos podem ser afetados?

Relativamente à banca, a eventual subida dos juros fá-los-á aproximar de níveis historicamente razoáveis e, portanto, entrar num cenário de normalização histórica face à circunstância longa que vivemos, de uma certa anormalidade, que são taxas de juro extremamente baixas e mesmo negativas. Um processo de normalização de taxas de juro “normalizará” a margem financeira dos bancos. Haverá outros aspetos menos simpáticos da “normalização” das taxas de juro, porque isso vai também aumentar os encargos para as pessoas e para as empresas endividadas. Espero que os vários agentes tenham tido uma atuação racional de se precaverem para um cenário que, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável. Portanto, pelo menos nesta fase, e tanto quanto é possível ver, não antecipo nenhum problema preocupante nessa frente. É óbvio que vai haver sempre, como há em todas as situações, gente – empresas e famílias – a quem os acidentes da vida atrapalham os planos e podem criar situações que não tinham sido previstas.

E em relação à subida da dívida soberana e o impacto que isso pode ter na carteira dos bancos, já que foram “engordando” a sua carteira de ativos com dívida do Estado português?

Começo por recordar que tanto quanto a minha memória consegue ir, e tirando o caso grego, não houve, mesmo durante a crise financeira, nenhum Estado europeu que deixasse de pagar as suas dívidas ou interrompesse o seu serviço. Não será agora, tendo em conta o muito que se aprendeu com os erros do passado. Já se aprendeu o suficiente para haver mecanismos de prevenção mais eficazes. Não querendo fazer juízos coletivos, porque aquilo a que chamamos banca é um conjunto de bancos, quero crer que a gestão de cada uma das instituições tenha também tido a precaução de estar devidamente almofadada para essa circunstância.

Considera que a banca portuguesa já integrou por completo os critérios ESG (environmental, social and corporate governance) nos seus planos de negócio?

Não há banca, há bancos. Há bancos que estarão melhor preparados, e há outros que estarão em processo de melhorar. Aquilo de que estou convencido é que todos se vão preparar porque é do seu próprio interesse de sobrevivência, se quisermos esticar o argumento. Portanto é inevitável que tenham de os incorporar, mais cedo ou mais tarde. Para a banca, o desafio virá sobretudo através do grau de exposição e do grau de vulnerabilidade que os seus clientes tenham a esse tipo de riscos.

O vice-presidente do BCP disse que no futuro a banca vai ter dificuldade em financiar as empresas menos sustentáveis. Concorda?

Os riscos de sustentabilidade para o setor bancário virão sobretudo dos seus clientes. Isso terá de ser incorporado nas matrizes de risco da avaliação dos bancos. É do interesse das próprias empresas ajustarem-se a essas necessidades e fazerem o seu caminho de adaptação. Estou convencido de que os bancos vão ser também agentes dessa transformação na sua interação com o resto da economia, vão ser conselheiros dos seus clientes, no sentido de os ajudar a responder a esse desafio, porque esse vai ser um desafio coletivo.

A banca vai ter um ponderador de capital maior se a empresa tiver carbono na sua produção?

Não sei à priori, porque isso vai depender das regras que vierem a ser impostas pela regulação. Agora tenho sempre a esperança de que, mesmo às vezes quando há grandes entusiasmos circunstanciais, o bom senso acabe por prevalecer. Espero também que os mapas de riscos físicos que vierem a ser estabelecidos tenham o cuidado de não induzir a ideia de tornar Portugal num “país evitável”. Não podem vir a ser criadas regras que tornem, à partida, as atividades em Portugal pior qualificadas do que noutras geografias, que, eventualmente, consigam melhor tratamento nos mapas desses riscos. Assim como também não fará sentido que as regras que venham a ser impostas sobre os consumos de capital penalizem o investimento em Portugal, tornando mais vantajoso para os bancos em Portugal investir fora do país. Estou intencionalmente a esticar um argumento para chamar a atenção de possíveis exageros que é preciso prevenir. Creio que é do interesse de todos – desde as autoridades políticas, aos reguladores, aos intermediários, às empresas, aos cidadãos –, que Portugal continue a ser um país viável, desejável e com futuro promissor.

Regista-se um aumento dos empréstimos para habitação por parte da banca. Isto poderá ser uma preocupação?

Não necessariamente. Primeiro porque têm garantias reais. Depois, porque é uma área onde os bancos estão mais do que experimentados a avaliar risco. É óbvio que, como em todos os percursos, haverá acidentes, mas não antecipo mais do que isso. A questão é saber se os acidentes têm impacto sistémico ou não. Não antecipo que o tenham.

O Banco de Portugal apertou os prazos no crédito da casa. Esta recomendação é útil ou pode condicionar a concessão de crédito à habitação? Consequências dessa medida para os NPL?

Não creio que daí venham grandes efeitos sociais. Admito até que a preocupação maior que terá levado o BdP a ter esse tipo de ação é que, estatisticamente, Portugal aparece um pouco como outlier na comparação estatística com outros países, com prazos mais elevados e isso na fotografia geral pode parecer menos agradável. Creio que esse terá sido o principal motivador da medida. Não creio que tenha sido pedida ou desejada pelos bancos. Obviamente que o prazo mais longo permite encurtar a mensalidade. O efeito será mais percetível nas camadas mais jovens, quando se endividam pela primeira vez, porque um prazo mais longo, lhes permite atenuar a mensalidade de entrada nesse mercado.

 

Cristina Bernardo

Os bancos têm estado a apostar no crédito ao consumo. Não considera que isso pode ser um fator de risco para a qualidade da carteira?

Temos a economia a crescer, é natural que isso se traduza num maior volume de crédito, quer oferecido, quer pedido. Toda a concessão de crédito envolve risco, é da natureza da operação. Do lado da oferta, os bancos estão suficientemente treinados e habilitados a avaliar e ponderar os riscos em que podem incorrer e cada um terá o seu próprio apetite de risco. Os bancos não concederão crédito sem fazerem uma avaliação prévia das condições do cliente e de o ajudarem a fazer a simulação da sustentabilidade para a sua vida. Mas isto não evita que haja acidentes que baralham os planos dos clientes e os colocam em situação difícil. Incomoda-me ver algumas vezes juízos paternalistas sobre as pessoas. Parto do princípio de que as pessoas que pedem crédito fazem contas às possibilidades que têm. Sei que os bancos também fazem as suas contas e têm regras estritas para o fazer, e que é do seu interesse aconselharem os clientes no caminho da sustentabilidade financeira.

Os bancos já fizeram o seu trabalho na limpeza do malparado?

Acho que sim. Uns, mais, outros em processo. Se se recordar, quando as moratórias acabaram e houve uma grande ansiedade, a resposta que os bancos deram quase unanimemente é que não antecipavam nenhum sobressalto, macroeconómico ou de sustentabilidade financeira. Isto sem prejuízo de reconhecerem que pode haver situações pontuais insuperáveis. Atender a essas situações mais difíceis, de empresas e famílias, é o papel do Estado. As indicações que tenho – não tenho acesso a informação que não seja pública – é que não há nenhuma preocupação significativa nessa frente. Tanto mais que a economia tem vindo a responder. Temos um nível de desemprego baixo. A atividade está a recuperar e isso por si é um adicional de segurança.

O que é preciso para melhorar a rentabilidade? A redução de custos é feita na banca através da redução do número de pessoas e do encerramento de balcões?

Para melhorar a rentabilidade a banca tem de aumentar as receitas e diminuir os custos. Portanto tem de ter uma maior racionalização de custos e tem de alargar as suas fontes de rendimentos. Olhando para o mundo em geral e para os países mais próximos de Portugal isso tem sido uma tendência. Isto não é um fenómeno particular dos bancos portugueses ou da banca ibérica é um fenómeno da banca em geral e decorre, em grande parte, das transformações tecnológicas que foram aceleradas pela pandemia. Por um lado, a digitalização dos processos e dos canais de contacto dos clientes com os seus bancos tornaram redundante a elevada rede agências. A redução de custos nunca será um processo totalmente concluído porque estas coisas estão sempre em movimento.

A redução de pessoal vai continuar na banca?

Mesmo em relação ao redimensionamento dos quadros de pessoal, e ainda que aquilo que tenha sido mais visível tenha sido a redução líquida do número de pessoas, há um fenómeno a que não podemos ser alheios, que é o facto de ter havido uma redução de um determinado número de funções e o aumento de outras. Hoje em dia a banca tornou-se numa atividade muito mais tecnológica, o que a leva a necessitar de recursos humanos com maior formação tecnológica e com menos talento analógico. E que se traduz numa recomposição e não apenas numa redução.

Recentemente o CEO do BPI disse que as comissões são necessárias num ambiente de taxas negativas, mas que a subida das comissões estaria perto do fim. Concorda?

Se o CEO do BPI, que está no terreno, diz isso é porque sabe. Mas o desafio essencial dos bancos é a rentabilidade. Culturalmente tem vindo a ser criada uma adversidade à ideia de lucros elevados, no entanto, numa economia de mercado – que é aquela em vivemos e a que melhor satisfaz as aspirações de bem-estar social da humanidade em geral e que ajudou a reduzir os níveis de pobreza no mundo – há uma lógica intrínseca, que é a necessidade de atrair recursos, nomeadamente capital. É importante haver capital para atrair talento e criar valor.

A rentabilidade baixa compromete o futuro da banca?

As empresas, para captarem capital, têm de oferecer uma rentabilidade adequada, que seja superior ao custo desse capital. Sem atrair capital, não conseguem expandir a atividade e isso compromete o crescimento das próprias empresas que dependem do crédito bancário. O que temos hoje é que a rentabilidade dos bancos tem estado aquém do custo do capital. O que significa que se os bancos não superarem essa barreira vão ficar condicionados no seu crescimento e limitados no apoio à expansão da economia. Enfatizo a importância do apoio às empresas que depois vão criar valor, emprego e PIB. Precisamos de ter bancos sólidos e rentáveis com capacidade para apoiar a expansão das empresas. Mas para olhar para a rentabilidade não nos podemos focar no volume dos lucros porque o que conta é a relação dos lucros com o capital investido.

Está a dizer que devemos olhar para o ROE e não para os resultados líquidos…

A banca hoje é dos sectores que tem mais capital investido na atividade e, portanto, tem de ter lucros mais altos para ter uma rentabilidade satisfatória. Os lucros, só por si, não dizem nada; tem que se ver a taxa de rentabilidade (lucros/capital). Há outros setores com menos lucros do que a banca, mas com taxas de rentabilidade muito mais elevadas, porque têm menos capital investido.

Os bancos estão a regressar aos dividendos. Considera que o estão a fazer de uma forma prudente? Poderá haver algum excesso depois do travão imposto pelo BCE?

Acho desejável que os bancos com condições para isso, possam distribuir dividendos. As empresas têm de distribuir dividendos, pois é essa a razão pela qual os investidores nelas aplicam capital: para obter um retorno. A prudência que tem de haver na distribuição de dividendos na banca resulta da especificidade que tem a sua atividade. Por exemplo, quando certas decisões no curto prazo gerem imparidades mais tarde. O curto prazo pode dar uma imagem distorcida da criação de valor, como ocorreu no caminho da crise financeira. Mas hoje estão criadas as salvaguardas para que isso não aconteça.

Os bancos estão preparados para o regresso das almofadas de capital regulatório que deixaram de ser exigidas temporariamente pelo BCE na resposta à pandemia. Não considera que o capital possa ser um trigger para provocar fusões entre bancos?

Os bancos tinham obrigação de antecipar o regresso das almofadas e por isso terão tomado as devidas precauções. A capacidade de atrair capital para apoiar o desenvolvimento é a questão crucial e por isso os bancos têm de ter rentabilidade. Obviamente que se houver individualmente instituições que não consigam responder a esse desafio ficam mais vulneráveis. A análise de movimentos de consolidação não pode ser feita olhando apenas para o nosso retângulo, porque fazemos parte de um mercado europeu e de um mercado global e todos os participantes nesse mercado estarão permanentemente a analisar as oportunidades e as ameaças que esse mercado lhes oferece. No que respeita ao mercado português, posso apenas dizer que me parece bem servido.

Quais são, não sua opinião, os custos de contexto de um banco em Portugal?

A banca portuguesa está sujeita a desvantagens competitivas, com origem em regras nacionais, que são contraproducentes até para o interesse final das autoridades que as criam e mantêm. Começando pela fiscalidade. A banca está sujeita a um conjunto de exigências fiscais e parafiscais sem paralelo noutros sistemas bancários com que concorre. Isso decorre muito do enviesamento de se olhar para o volume de lucros sem atender à (baixa) rentabilidade. Criou-se a contribuição extraordinária num contexto de crise económica, que depois foi superado, mas a contribuição manteve-se.

 

 

Cristina Bernardo

 

E sobre as contribuições para o Fundo de Resolução? 

Criou-se a ficção do Fundo de Resolução e da necessidade de os bancos “bem comportados” pagarem as suas intervenções, através de contribuições extraordinárias para o Estado. As intervenções que foram feitas nos bancos [BES e Banif], foram-no por interesse público e já foram refletidas nas contas do Estado (quer no Orçamento, quer na dívida), pois o Fundo de Resolução é uma entidade do Estado e consolida com o Estado. As contribuições extraordinárias a que a banca está hoje obrigada são receitas que acorrem aos Orçamentos actuais, são receitas para financiar as despesas contemporâneas. São, do ponto de vista económico, e independentemente da paramentação jurídica que lhe ponham em cima, impostos extraordinários que incorporam o orçamento das administrações públicas e que servem para financiar a despesa contemporânea. Fazem parte da gestão orçamental anual. Como tal são um imposto corrente que incide especifica e injustamente sobre a banca. Não tem base moral ou racional aceitáveis e cria uma desvantagem concorrencial face aos bancos que podem operar em Portuga, sem estar cá localizados, e concorrem em vantagem – com menos custos (menos impostos) – nos negócios de menor risco da atividade bancária.

Isso é uma desvantagem competitiva…

Hoje em dia, os bancos portugueses quando abrem a porta no início do ano, sem terem ainda qualquer negócio, já têm um custo em cima – uma espécie de “imposto de porta aberta”. Entram numa corrida com um saco de tijolos às costas. Para assegurar a rentabilidade necessária para atrair capital e poder servir a expansão da economia, são obrigados a um esforço maior de captação de receitas – preço dos serviços prestados – e de redução de custos (incluindo reduções de pessoal]. Ou seja, toda a economia acaba por sofrer as consequências dessa fiscalidade discriminatória sobre a banca e daí esta ser contraproducente para o interesse final das autoridades.

O Governo criou uma contribuição adicional de solidariedade sobre o setor bancário em 2020 para financiar a segurança social. Acha que ambas as contribuições vão manter-se no OE de 2022?

Esse é outro. Foi criado numa situação de crise pandémica e hoje em dia não tem sequer a justificação que o criou e continua a manter-se porque é uma receita corrente do Estado. E mais uma vez é uma discriminação sectorial já que é discutível sobre se deveria ter incidido apenas sobre a banca. Eu acredito sempre que, mais cedo ou mais tarde, o bom senso prevalece e que o Governo terá o bom senso de perceber a iniquidade que isto envolve, nomeadamente por desfavorecer as entidades que estão localizadas em Portugal e estar assim a favorecer o desvio da atividade bancária para fora do país, favorecendo a deslocalização de empregos, de criação de valor e da base fiscal. Embora também perceba as dificuldades dos decisores políticos. A forma habitual de resolver estas contradições é adoptar processos de transição, com gradualismos.

Se tivesse de fazer uma antevisão qual seria, na sua opinião, o modelo de negócio dos bancos? Os banqueiros têm falado de uma banca de “parcerias”…

Cada banco vai ter de adaptar o seu modelo de negócio às novas exigências e cada um pode optar por caminhos diferentes, essa é a essência da concorrência numa economia de mercado. Não têm de chegar todos ao mesmo modelo de negócio. A única coisa que me parece certa é que a banca vai ser mais tecnológica no futuro. Agora há coisas que não antevejo que mudem. A banca existe para intermediar crédito, para captar recursos e emprestar a quem precisa. Se esta função deixar de existir, deixam de ser bancos para passarem a ser outra coisa. Os processos para fazer a intermediação de crédito é que provavelmente irão mudar e aí a componente tecnológica será maior e com maior utilização da inteligência artificial. A própria forma dos pagamentos e de transferências vai ser mais digital.

Como é que os bancos reagem a esses novos desafios?

Ou desenvolvem as novas capacidades internamente ou obtêm-nas no exterior, através de parcerias ou aquisições. As fintechs vieram trazer desafios e contributos novos que podem ser um instrumento de uma futura miscigenação de espécies dentro do ecossistema bancário. Já as ameaças que vêm das grandes plataformas são de outra natureza, porque são ameaças ao próprio ecossistema. As fintechs são uma nova espécie que entrou no ecossistema existente e levará a um ajustamento num novo equilíbrio sistémico. Mas as big techs são um novo ecossistema que ameaça o ecossistema existente. O que há que assegurar, em ambos os casos, é que a regulação é justa e, portanto, semelhante para todas as actividades equivalentes. O que hoje acontece é que a regulação sobre as novas atividades, é muitíssimo menor e mais permissiva do que a da atividade bancária e isso desnivela bastante o terreno concorrencial, quer dentro do ecossistema bancário, quer entre os dois ecossistemas. Espero que os reguladores corrijam rapidamente esse desnível.

Mário Centeno disse recentemente que o objetivo do euro digital é que complemente, mas não substitua o numerário. Quer comentar?

O euro digital é inevitável, mas o formato final ainda não é claro. O impacto do euro digital, no seu total, é neste momento imprevisível. Uma das preocupações dos bancos centrais é a concorrência das criptomoedas ao numerário. Hoje em dia há uma limitação na conversão dos depósitos em numerário, por razões físicas. A partir do momento em que o numerário se transforma em digital, deixa de haver essa limitação física, o que possibilitaria, a qualquer momento, e em extremo teórico, que todos os recursos bancários se pudessem converter em moeda digital. Transformar todos os depósitos bancários em moeda digital do banco central implicaria que os próprios bancos centrais tivessem de ter uma dimensão incomensurável que os tornaria quase ingeríveis, pois nesse caso, teriam de passar a gerir centenas de milhões de clientes o que é em si uma dificuldade prática. Por outro lado, tornaria mais difícil a atividade de crédito à economia. Isto não é o desejo de ninguém, porque teria resultados contraproducentes. A forma de assegurar que as novas moedas digitais oficiais vão produzir um bem maior sem criar um mal maior é, pois, o desafio que está em cima da mesa. Tem de ser assegurado que o remédio não mate o doente. Isto é, que não tem efeitos colaterais mais adversos do que os benefícios visados. Não nos podemos esquecer que quer o numerário, quer as criptomoedas são instrumentos preferidos das transações anti-sociais – marginais, criminosas, ou de evasão fiscal e por isso percebo a preocupação das autoridades.

Considera que a Plano de Recuperação e Resiliência, num país com maioria absoluta, é uma oportunidade?

Obviamente que o PRR é uma oportunidade importantíssima. O país tem todo o interesse em tirar o maior partido dela. Se não for assim, a geração vindoura não perdoará à geração atual ter desperdiçado esta oportunidade. Relativamente à questão da governabilidade, a existência de uma maioria absoluta num partido historicamente moderado torna mais fácil concretizar os programas e os objetivos, uma vez que fica mais livre de constrangimentos mais radicais. Mas o resultado concreto vai depender da vontade política e, sobretudo, dos mecanismos de governance que sejam postos em prática. Porque uma das maiores vulnerabilidades do nosso país é a qualidade da governance, pública e privada.

Na sua perspetiva o Banco de Fomento tem um papel importante para as empresas e tem corrido bem a convivência com o setor bancário?

Se a iniciativa de criar o Banco de Fomento é boa ou má vai depender dos resultados. O ideal que motivou a criação da instituição foi bom. Na convivência com o setor bancário não há nenhuma adversidade, cada um tem a sua missão e ambas se complementam. Há um potencial de desenvolvimento de sinergias entre os bancos e o Banco de Fomento que é favorável ao país.

O Banco Português de Fomento pode vir a ser associado da APB?

O BPF é uma sociedade financeira e não um banco. O problema nunca se colocou.

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