Comprometi-me começar a explicar como vamos dar valor legal ao código informático auto-executável da Blockchain, conhecido até agora por Smart Contract. Sabendo que o Smart Contract têm imenso valor para as DAO (Organização Autónoma Distribuída, e não regulada), este ensaio discute porque não podem ir tão longe quando se trata de transacções envolvendo activos da economia tradicional. É que esse activos requerem transacções com valor legal e, até agora, a única forma de reconhecer legalmente o Smart Contract descarta totalmente a sua faceta de auto-execução autónoma, obliterando assim o seu valor estratégico para a economia.

Será que podemos dar valor legal a sério ao Smart Contract, para que a economia também possa beneficiar das vantagens incomensuráveis de uma auto-execução ecossistémica verdadeiramente autónoma?

Mas então os Smart Contracts não são verdadeiros contratos?

A tecnologia da Blockchain traz consigo uma limitação potencial e grave quanto ao reconhecimento dos intervenientes nas suas transacções, pois é manipulada com tokens na forma de chaves criptográficas. Ora, essas chaves são criadas anonimamente pelos seus utilizadores, pelo que apenas sabemos a quem correspondem depois da sua primeira utilização, daí dizermos que são pseudo-anónimas. Além disso, mesmo que saibamos a quem parecem corresponder, não há garantia de sabermos quem manipula de facto essas chaves.

Por outro lado, todos os activos abrangidos pelo Estado de direito têm de ser geridos dentro da lei. Por exemplo, há activos sujeitos a registo institucional, como é o caso do imobiliário; há activos que apenas precisam de ser registados nas contas das empresas, e outros há que não precisam de registo nenhum.

Na verdade, o registo legal não depende só do tipo de activo, mas também do seu ciclo de vida, bem como das responsabilidades de registo que por sua vez variam de acordo com o tipo de entidades envolvidas. Ora, a tokenização de activos com chaves criptográficas e pseudo-anónimas não está conforme com a lei quando esse activos têm de ser devidamente identificados perante o Estado de direito.

Consequentemente, como se pode constatar com (i) identificação de pessoas jurídicas e (ii) a identificação legal de activos, os Smart Contracts estão muito longe de poderem ter valor legal, dada a utilização de chaves criptográficas pseudo-anónimas, as quais são incapazes, por si só, de cumprirem, entre outros, os critérios de identificação exigidos pela lei.

A custódia como solução ao valor legal da informação desmaterializada

Até hoje, o código informático só tem conseguido ganhar valor legal quando executado sob a responsabilidade de uma qualquer pessoa jurídica, ou seja, um guardião com a custódia da informação, e que assume a responsabilidade pelo seu processamento electrónico. É o que se aplica hoje sem excepções a toda a informação desmaterializada nos computadores. Com um guardião, os Smart Contracts já podem participar nas transacções com valor legal, tal como acontece com todos os outros tipos de código informático. Porém, neste caso, a legalidade do processamento é dada pela entidade e não pelo código informático em si. Desta forma, a estratégia da custódia tem sido uma solução, mas não é a única possível, e nem sequer é a melhor.

Os Smart Contracts em acção nas DAO

Não obstante, as vantagens da auto-execução autónoma dos Smart Contracts são bem visíveis nos ecossistemas cujos activos não fazem parte da economia dita tradicional, ou seja, ainda sem cobertura legal. É, por exemplo, o caso dos ecossistemas das finanças não-centralizadas conhecidos #DeFi (Decentralized Finance) onde a autonomia da auto-execução de transacções é total e independente de qualquer entidade. Por exemplo, a Binance é um Exchange que vende activos oriundos da #Defi, mas não é #Defi. Já o AMM (Automated Market Maker), concebido originalmente também pela Binance, por ser uma DAO, é pura #DeFi, pois é um Exchange totalmente autónomo.

Numa DAO, a propriedade da auto-execução assegura em definitivo que as condições aceites pelos participantes não podem deixar de acontecer. Assim, os Smart Contracts são particularmente interessantes por irem mais longe na redução do risco envolvido em qualquer transacção, pois a Blockchain assegura que as partes cumprem sempre, acrescentando assim um grau de confiança extraordinário e verdadeiramente novo.

Mas atenção: a validade legal, seja de que transação for, carece sempre de um passo subsequente que o certifica, hoje apenas conseguido recorrendo à referida custódia. Será que conseguimos estender a maravilhosa propriedade de auto-execução autónoma, ou seja, sem custódia, à economia tradicional? E quais seriam as vantagens?

A economia tradicional não é compatível com os Smart Contracts

Os intervenientes de uma economia são pessoas jurídicas que usufruem e transaccionam elementos de valor entre si. A desmaterialização da informação em muito tem ajudado a economia, e a prová-lo está a valorização fulgurante de algumas das maiores empresas do mundo, cujos serviços são exclusivamente informáticos, as famosas Big Tech.

Ora, a auto-execução autónoma proporcionada pela Blockchain é uma inovação disruptiva na história da humanidade, e na base da 4ª Revolução industrial em curso. Torna-se assim extremamente tentador usufruir das propriedades da Blockchain na economia tradicional. É, aliás, por isso que há quem defenda a utilização directa das criptomoedas como meio de pagamento, ou a tokenização de activos, tais como os bens imóveis, para que as respectivas transacções possam beneficiar da suprema conveniência das wallets nos smartphones. Há mesmo quem vá mais longe e defenda a substituição do tecido empresarial (e não só) pelas DAO, tal como as conhecemos hoje. Mas não é assim tão simples.

Os estados de Wyoming e Delaware nos EUA tentaram dar valor legal às DAO, mas não sem definirem pessoas jurídicas, como é normal em qualquer ordenamento jurídico. Tal não resolve, portanto, a legalização dos Smart Contracts sem custódia. É que a lei costuma obrigar ao registo e identificação de um conjunto alargado de activos da economia, sendo a massa monetária desmaterializada nas instituições bancárias um caso particularmente relevante.

Mas quem fala de transacções de reservas de valor em dinheiro, também fala de bens mobiliários e imobiliários de qualquer tipo. Devemos ter presente que o mundo dos Smart Contracts é manipulado com chaves criptográficas, e estas podem ser criadas anonimamente por qualquer utilizador da Blockchain.

Consequentemente, não vamos poder usar esta nova tecnologia com activos relevantes da economia tradicional sem um passo intermédio que permita a identificação das pessoas jurídicas envolvidas nas transacções, bem como dos activos em causa. É, aliás, por isso que a economia tradicional não é compatível com os Smart Contracts, o que tem obrigado, até agora, a que o reconhecimento legal de código informático, incluindo Smart Contracts, careça da custódia já referida. Ora, este tipo de responsabilização legal retira-lhes a autonomia pretendida.

E no sentido inverso? Será que os activos podem fazer parte dos ecossistemas promovidos pela tecnologia Blockchain à margem do controlo imposto pelos mecanismos legais tradicionais? A resposta é claramente não para todos aqueles sujeitos a registo legal, e durante o período de tempo em que esse registo é obrigatório. Vale até para o dinheiro, senão vejamos. Da mesma forma que só podemos transaccionar imóveis cumprindo contratualmente os requisitos da lei, o mesmo acontece para todos aqueles sujeitos a facturação, ou mesmo para o dinheiro desmaterializado nas contas bancárias.

É por isso que não é possível pagar directamente em criptomoedas sem passar primeiro por um Exchange que termine a transacção na massa monetária da economia em causa (salvo as honrosas excepções de El Salvador da República Central Africana com a Bitcoin). Portanto, não há razão para se pensar que vamos perder o controlo dos activos económicos no mundo pseudo-anónimo da Blockchain. Mas isso não quer dizer que não haja activos passíveis de desmaterialização na Blockchain quando estão fora do alcance dos ordenamentos jurídicos, como é o caso dos NFT, ou de tudo o que se passa no Metaverso exclusivamente virtual. Aliás, na nossa economia, nem todos os activos são sujeitos a controlo apertado.

A entrada em cena dos Contratos Auto-executáveis

A Blockchain tem propriedades fabulosas, mas continuar a utilizar a técnica da custódia para dar valor legal ao processamento informático é extremamente limitador pois é uma recentralização da informação, desprezando assim as vantagens da auto-execução autónoma agora tornada possível com a Blockchain.

Assim, para aproveitar estas vantagens, vamos ter de encontrar uma solução que não dependa da referida custódia, tornando os Smart Contracts em verdadeiros Contratos Auto-executáveis. Para isso, vamos ter de resolver a questão da identificação de pessoas jurídicas e da identificação legal de activos, entre outros aspectos que serão devidamente explicados em breve. Uma coisa é certa: não poderão continuar a ser referidos por Smart Contracts. Vamos chamar-lhes simplesmente Contratos Auto-executáveis e, desta vez, serão contratos a sério.

O valor estratégico dos Contratos Auto-executáveis para a economia

As vantagens dos Contratos Auto-executáveis para a economia vão para lá do imaginável.

Vamos buscar inspiração aos ecossistemas extremamente eficientes suportados pela Blockchain, incluindo a #DeFi, e a ideia é conseguir que os Contratos Auto-executáveis manipulem os activos reais e as pessoas jurídicas com a mesma eficácia. Significa, por exemplo, que o projecto do Euro Digital em curso, se for a sério, não pode depender de custódia, e que, para isso, os seus Smart Contracts terão de ser verdadeiros Contratos Auto-executáveis com as funcionalidades relevantes para a economia e aprovadas pela democracia.

Contratos Auto-executáveis significa tokenizar activos em toda a extensão das suas transacções, desde a identificação do activo, ao ciclo de vida do seu registo, tal como definido na lei. Os activos tokenizados têm mais liquidez, pois passam a estar munidos da conveniência do mundo das wallets, onde tudo é transaccionado com a facilidade de ler um QR Code, ou de mandar uma mensagem. Vale para os activos, mas também para as transacções, incluindo a colateralização das garantias.

Será um mundo verdadeiramente admirável, mais conveniente a todos os títulos, e com muito menos necessidade de ser regulado através de listas intermináveis de relatórios. A auto-execução autónoma ao nível da transacção de activos é, aliás, o céu dos reguladores, pois as regras são sempre aplicadas independentemente de qualquer guardião, seja a que título for.

Para que os Contratos Auto-executáveis possam ter de facto valor legal, muitas vão ser as alterações à legislação e também à regulação em vários sectores. Ora, isso só será possível se a democracia fizer o seu trabalho. Como sabemos, a tecnologia tem tanto de bom como de arriscado, pois queremos manter a nossa privacidade num mundo cada vez mais controlado pelos sistemas informáticos. Como a tentação de controlo pode ser enorme, é bom que a discussão pública seja suficientemente lúcida para que as decisões de bom senso sejam tomadas a tempo. Infelizmente, não é isso que está a acontecer, pois o tema da identificação jurídica, por exemplo, tem continuado a ser largamente ignorado, e discutir na ignorância é no mínimo perigoso.

Aliás, é por isso que Sun Tzu refere, a este respeito, que o ignorante temerário é o mais desastroso dos líderes. Além disso, empurrar com a barriga apenas nos faz pender para a desvantagem competitiva. Portanto, talvez esteja na altura de discutirmos o que interessa, munidos do conhecimento que interessa. Fica assim prometida para o próximo ensaio a explicação das bases da arquitectura jurídica subjacente aos Contratos Auto-executáveis. Servirá para preparar a discussão.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.