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DGEG. Diretor lançou campanha interna de crowdfunding para comprar carro usado para deslocações em serviços

Carros com 30 anos, todos avariados; concursos para comprar veículos novos parados há quatro anos; trabalhadores obrigados a usar veículos próprios para serviços. Portugal quer estar na frente da transição energética, e tem metas ambiciosas, mas o organismo do Estado responsável pelo licenciamento não tem carros disponíveis para os serviços. Tutela diz que não se reconhece nesta iniciativa. Diretor acabou por retirar iniciativa, após resposta “descontente” de alguns trabalhadores.
4 Julho 2023, 10h00

O diretor da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) lançou uma campanha interna de pedidos de donativos – conhecida popularmente por vaquinha, ou por crowdfunding, na versão mais moderna – para comprar um carro usado para deslocações em serviços. A DGEG já era conhecida por ter falta de meios humanos para despachar os licenciamentos de energias renováveis em tempo útil. À falta de pessoal, junta-se agora a falta de veículos num completo paradoxo do Governo: anuncia metas ambiciosas nas renováveis, mas não dá condições aos organismos do Estado para realizarem o seu trabalho para permitir que o investimento privado nas renováveis avançe.

O cenário relatado por João Bernardo, no email de 30 de junho, é muito preocupante. Veículos com 30 anos, todos avariados; concursos que não saem do papel há quatro anos; trabalhadores a usarem os seus próprios veículos.  Entre os serviços externos, a DGEG realiza ações de “fiscalização, ligação de instalações de eletricidade e combustíveis, acompanhamento de projetos de execução, acompanhamento e vistoria de projetos financiados, pedidos de licenciamento, avaliação da conformidade de projetos, questões de segurança e qualidade, denúncias, para além da participação dos funcionários da DGEG em um sem número de outras atividades que vão das simples reuniões, participações em eventos, ações de formação e sensibilização, deslocações entre os vários polos da DGEG”, conforme detalha o responsável no email.

A DGEG é o braço armado do Estado para a “conceção, promoção e avaliação das políticas relativas à energia e aos recursos geológicos, numa ótica do desenvolvimento sustentável e de garantia da segurança do abastecimento”, é assim como se auto-descreve o organismo. João Bernardo lidera o organismo responsável por licenciar muitos gigawatts nos últimos anos e na próxima década. É também da DGEG que sai uma boa parte do trabalho para elaborar o Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) 2030, em conjunto com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), o roteiro para a política energética nacional até ao final da década. Este plano, recentemente revisto, e enviado para a Comissão Europeia, incluindo 2 gigawatts de energia eólica offshore ou 13,5 gigawatts de energia solar.

“Desde 2015 a DGEG já entregou para abate 32 viaturas na expetativa de que lhe fossem atribuídas, como prescreve a lei, metade desse efetivo abatido, i.e., 16 viaturas. Por conseguinte, no início de 2019, lançou um procedimento para aquisição de 15 viaturas fundamentando a sua absoluta necessidade junto da SG Ambiente. Por pedido do gabinete do ministro [à altura, João Pedro Matos Fernandes] reduzimos o nosso pedido para 8 viaturas por se ter considerado que seria difícil obter tantas viaturas (15) de uma só vez, face aos valores totais envolvidos. O processo seguiu para a ESPAP, que gere a frota de veículos do estado, que deveria ter apresentado uma proposta para aprovação ao Ministro das Finanças da altura. Nunca soubemos se a proposta foi apresentada ou não. A partir daqui perdemos o rasto ao processo, uma vez que nunca foi autorizada a aquisição, nem pelo Ministro das Finanças, nem pela ESPAP, que tinha delegação de competências mas cujo limite se reduziu a 20 mil euros (o que em Aluguer Operacional de Veículos, significam 2 ou 3 viaturas no máximo). Por outro lado, também não se reconheceu a pretensão da DGEG em adquirir veículos todo-o-terreno (TT) ou SUV ou outros capazes de se deslocarem a minas, pedreiras, estaleiros, hídricas, eólicas no topo das serras, etc… O que se pretendia era atribuir carros elétricos (!!). Bem, nem esses vieram”, pode-se ler no email a que o JE teve acesso.

O JE contactou o diretor da DGEG para pedir uma reação, mas não obteve resposta até agora.

“Passados mais de 4 anos sobre o pedido a DGEG encontra-se numa situação caricata de não ter frota (os poucos carros que existem têm quase todos mais de 30 anos e estão quase todos avariados). Por isso temos dependido nos últimos meses/anos das viaturas postas à disposição pelos funcionários para realizar o serviço público a que esta Direção-geral está obrigada. Nestas circunstâncias, o nosso compromisso de serviço público e de missão fica seriamente comprometido e não existe outra forma, com recurso ao orçamento da DGEG, de adquirir ou alugar as viaturas que necessita para trabalhar”, acrescenta.

“É por isso que resolvi tomar uma iniciativa, inédita no Estado, mas bastante comum na sociedade civil: lançar uma campanha de recolha de donativos (agora chama-se crowdfunding) para financiar a compra de uma viatura que depois será doada ou cedida à DGEG para cumprir a sua missão. Para já será apenas uma campanha interna, lançada aos funcionários da DGEG. Esta viatura será comunicada à SG Ambiente e à ESPAP para que possa ser integrada na frota do Estado”, segundo João Bernardo.

O diretor da DGEG disse que a campanha vai ter início pelo Algarve que “não tem qualquer viatura nem daquelas que andam a “empurrão”. Não é preciso gastar muito dinheiro e nestas circunstâncias podemos optar por uma viatura usada em boas condições. Por cerca de 3 mil euros já se arranja um carro com 15 anos e capaz de não envergonhar ninguém e fazer o serviço”.

No email, o responsável disponibiliza um IBAN e um BIC para as transferências, detalhando que a conta já teria 105,36 euros. “Será dado conhecimento diário do montante desta conta e quando atingir o valor do carro a adquirir (neste momento prevemos que seja entre os 2000 e os 3500 euros) faremos a aquisição e respetiva cedência à DGEG que ficará doravante responsável pela sua manutenção, exploração, inspeções, revisões e combustível (para estes serviços já não temos tantas restrições). Espero que possam também contribuir, não importa com que valor, não importa quantas vezes, mas vamos ter uma frota!”.

Entretanto, João Bernardo enviou outro email na segunda-feira à tarde para retirar a campanha. Segundo a denúncia anónima recebida pelo JE, isto aconteceu após a “resposta de alguns funcionários, claramente descontentes”.

“A situação das viaturas de serviço é uma situação grave e não me parece ter sido bem compreendida na sua plenitude. Nestes termos informo que a campanha que foi proposta na sexta-feira fica sem efeito. Será equacionada uma proposta de constituição de uma Casa de Pessoal da DGEG, a qual se irá debruçar sobre este e outros problemas de interesse comum aos funcionários e à Direção Geral enquanto instituição que acolhe pessoas, trabalhadores e expectativas. A Direção Geral, como costumo dizer, não é um fim em si, esse é o interesse público, o interesse coletivo. A Direção Geral é o local onde trabalhamos 7, 8 ou mais horas por dia e onde damos tudo o que temos para cumprir a nossa missão. É por isso importante termos as condições mínimas para o fazer”, de acordo com o segundo email de João Bernardo.

 Na denúncia anónima inicial que chegou ao JE, é destacada a falta de condições para os trabalhadores da DGEG realizarem os seus serviços externos. “Como podem observar, não temos condições para executar a nossa atividade e temos de recorrer a meios alternativos para obter instrumentos que nos permitam fazer o nosso serviço público! Além dos nossos impostos, vemo-nos obrigados a fazer doações para a nossa direção, simplesmente porque o nosso sentido de compromisso nos obriga a cumprir com o disposto em legislação e para não lesar os cidadãos e empresas que estão dependentes dos nossos serviços!”.

Questionado pelo JE, a tutela disse que desconhecia esta campanha interna. “O Ministério do Ambiente e da Ação Climática desconhecia esta iniciativa da DGEG e não se reconhece nela, entendendo que não se resolvem assim este e outros constrangimentos da Administração Pública”, disse fonte oficial da tutela ao JE.

“Os problemas terão de ser resolvidos com a contratação dos meios adequados e que estão em curso”, segundo a fonte  da Rua do Século. O JE tinha pedido especificamente por datas de lançamento dos concursos e quantos veículos, mas a tutela não avançou com nenhum detalhe.

“Orçamento do Estado dizia que DGEG podia contratar 93 técnicos, mas Finanças só autorizaram 36”

A falta de meios humanos é outro dos problemas da instituição. Em abril, uma das diretoras da instituição denunciava a falta de pessoal no organismo.

A DGEG tem poucos recursos humanos, com umas áreas mais desfalcadas do que outras, nomeadamente, a do licenciamento das renováveis. Há um grande esforço por parte das pessoas na DGEG. Faz-se o que se pode com os recursos que se tem”, disse Manuela Fonseca, diretora da instituição, ao JE, há mais de dois meses.

“A parte mais complicada é a área do licenciamento de renováveis, são milhares de processos que depois não andam, e não é só porque o serviço não dá vazão, mas por questões ambientais ou outras. E também falha porque os próprios promotores do solar também têm dificuldades na compra de equipamentos. Tudo isto emperra o desenvolvimento que o país quer de renováveis”, destacou então a responsável.

“A grande falha é de recursos humanos e a questão das plataformas informáticas que devíamos ter e não temos. Não se consegue contratar, temos orçamento, mas há a questão das cativações das finanças”, acrescentou na ocasião a responsável da área de Serviços, Planeamento Energético e Estatística.

“Tudo isto é um bolo, não se esgota na falta de capacidade da DGEG, mas em todo o panorama à volta e está a dificultar a implantação célere que se quer das renováveis. Não foi à toa que a sra. secretária de Estado da Energia proferiu os despachos para prolongar a execução dos processos solares”, afirmou ao JE à margem da B+ Summit que teve lugar no Estoril no final de abril.

Quadro da DGEG há 30 anos, a responsável dá o exemplo do sucedido há dois anos: “o problema foi que a lei do Orçamento do Estado de 2021, dizia que a DGEG podia abrir concursos para 93 técnicos, e depois as Finanças só autorizaram 36.”

“Conheço muito bem a casa e o sector. Há 10 anos que o digo, não tenho pessoas mais novas do que eu a quem passar o meu conhecimento. Especialistas de energia neste momento há ao pontapé, toda a gente agora é especialista. Agora, quem de facto tem conhecimento, somos poucos”, acrescentou.

Sobre a mobilidade interna a partir de outros organismos da Administração Pública, aponta que não aparecem candidatos a pedir transferência para a DGEG. Já nos concursos externos, “aparece tudo, às vezes lá se consegue alguma coisa”.

“Desinvestiu-se nos recursos humanos, quando começaram a emergir as grandes plataformas informáticas, o Estado não se soube dotar desses meios, que hoje em dia seriam imprescindíveis para o nosso trabalho”, concluiu.

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