Uma das definições mais aceites de “cultura”, a de Edward B. Tylor, conceptualiza o fenómeno como “todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. A cultura é, portanto, o reflexo de um sistema que, na nossa concepção, nos distingue dos restantes animais; então, por que desvalorizamos, enquanto sociedade, o trabalho dos agentes de cultura?

Face ao cancelamento ou adiamento da generalidade dos espectáculos e eventos culturais, um sector cronicamente mal pago, precário e cheio de incerteza profissional tornou-se agora rico em casos de fome e desespero.

Trabalhos de um ano inteiro, como acontece com variadíssimos festivais pelo país fora, foram por água abaixo de um dia para o outro; trabalhadores técnicos, já antes com contratos inadequados e injustos, vêem-se agora sem espectáculos para preparar ou obras para produzir; museus e centros culturais fechados tentam redirigir a sua oferta.

É curioso que, apesar do cancelamento generalizado das actividades culturais e do reconhecimento a priori (e, portanto, previsto) das dificuldades em que iria mergulhar o sector, estes sejam os profissionais que mais nos têm acompanhado durante o período de isolamento.

No fundo, é um pouco como sucede com a comunicação social: o Governo e restantes autoridades, incluindo as de saúde, dependem e confiam nos órgãos de comunicação social para fazer chegar aos cidadãos informações fulcrais durante toda esta crise de saúde pública, mas permitem que o sector vá ruindo aos poucos, atirando bóias de 15 milhões que pouco mais fazem do que manter à tona, quando a tempestade que vivemos nos atinge com ondulações económicas nunca antes vistas.

Antes de oficializar a proibição da realização de festivais de verão, o Governo, representado pela ministra Cultura, recebeu “representantes destes eventos”, nomeadamente, do Rock in Rio, Everything is New (responsável pelo NOS Alive), Música no Coração (a promotora do Sudoeste, do Summer Fest ou do Super Bock Super Rock), da Ritmos (organizadora do Primavera Sound e do Paredes de Coura) e do Marés Vivas.

Ora, reconhecendo eu a importância destes eventos na dinamização da vida cultural e económica nacional, parece-me pouco precavido ouvir apenas promotores de festivais que contam com patrocínios e colaborações das maiores empresas presentes em território nacional, como sucede com todos estes eventos, e de ignorar festivais mais pequenos e periféricos em detrimento dos de grande dimensão que tomam os parques ou passeios marítimos de Lisboa ou Porto.

Acho inconcebível não ter sido dada a palavra a promotores em regiões com uma oferta cultural incapaz de competir com as grandes cidades portuguesas, de eventos em regiões ultraperiféricas que, a muito custo, esforço e sacrifício, dinamizam a vida de populações inteiras, colocando-as em contacto directo com formas de expressão que, na melhor das hipóteses, talvez vissem um dia na televisão ou na internet.

Digo isto pensando muito no querido e saudoso Tremor e na desilusão de quem trabalhou um ano para trazer, novamente, uma semana de música alternativa envolvida por natureza e envolvendo as gentes locais a uma terra quase esquecida dos roteiros culturais; mas sei que seria igualmente válido para festivais como o Bons Sons, o FMM, o Indie Music Fest ou o Andanças. Nem o Boom, aquele que será, com pouca discussão, o festival português com maior projecção internacional (apesar da má fama dentro de portas) foi tido em conta, sendo preterido por festivais com apoios de multinacionais, que promovem maioritariamente artistas internacionais já estabelecidos, fomentando em pouco a produção cultural nacional.

Ao menos temos de dar crédito à coerência: também na comunicação social, o PR reuniu foi com os representantes da RTP, SIC e TVI, deixando para trás toda a restante imprensa escrita e, sobretudo, a regional, que será sempre a mais afectada pela situação que vivemos actualmente.

Também, justiça seja feita à governação: neste capítulo, muita da culpa reside na Comissão Europeia, que tarda a legislar face ao uso indevido por sites e portais de peças jornalísticas, que sistematicamente se apropriam do trabalho e propriedade intelectual dos órgãos de comunicação social para daí fazerem dinheiro com publicidade.

Os festivais são apenas uma pequena parte da colossal ruína em que se transforma aos poucos a nossa cultura, que vinha, nos últimos anos, a brotar em diversos ramos, pouco a pouco, mas consistentemente. Mais do que os artistas, há todo um sector que, não trabalhando no palco, depende deste para ganhar o seu. E, sendo a cultura a expressão máxima de qualquer vida comum nacional, deve ser preservada com o mesmo afinco que o resto da economia.

Churchill não questionou, em resposta a uma proposta de corte de fundos às artes em tempo de guerra, por que haveria o país de lutar “se não para manter a sua cultura?”; mas, caso o tivesse feito, teria toda a razão. Por isso, lutemos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.