Foi publicado em Junho passado a directiva 858/2022 do Parlamento Europeu que vai iniciar instituições tradicionais reguladas no uso da blockchain. Esta directiva será lei em Março de 2023 e é conhecida por Pilot DLT (DLT significa Digital Ledger Technologies e inclui a Blockchain).

Entretanto, o Parlamento Europeu também deu luz verde à entrada em vigor do MiCA para daqui a cerca de 18 meses, tendo, ao mesmo tempo, fixado finalmente o seu âmbito de aplicação – MiCA significa Markets in Crypto Assets e será uma legislação dirigida essencialmente ao investimento em Utility Tokens fungíveis, tais como as criptomoedas.

aqui tive oportunidade de comentar o MiCA, na altura em que esta legislação entrou em consulta pública em Outubro de 2021, tendo argumentado porque não chega. Está agora confirmado que o MiCA deixa de fora, entre outros, os NFT (utility tokens não fungíveis) para além dos instrumentos financeiros referidos no 15º ponto do Artigo 4º da directiva 2014/65/EU (secção C do anexo I), mais conhecida por MiFID II (Markets in Financial Instruments Directive) da ESMA (European Securities and Markets Authority).

Ou seja, deixa de fora todo o tipo de titularização conhecida por Securities nos EUA ou Transferable Securities na União Europeia (UE), incluindo derivados, como futuros e opções. Quer isto dizer que os Security Tokens ficam completamente fora do seu âmbito. Consequentemente, o MiCA apenas preenche lacunas na protecção aos ICO, porque, sem esta nova legislação, tais investimentos só podiam ser considerados crowdsourcing.

Ora, é precisamente aqui que entra o Pilot DLT, pois, apesar de ainda não contemplar derivados financeiros, já permite a tokenização de títulos como acções e obrigações, o que está explicitamente fora do âmbito, quer do MiCA, quer do MiFID II.

O Pilot DLT é, portanto, um incentivo à utilização da blockchain para este tipo de títulos por parte das instituições reguladas. Aliás, a forma como o Pilot DLT complementa o MiCA, e a forma como este último também é complementar ao MiFID II, sugere que deverá sair em breve uma nova versão da directiva sobre instrumentos financeiros que vai incluir a representação dos outros tipos de títulos (transferable securities) em Smart Contracts.

Então, o que significará exactamente para as empresas a recente ratificação do MiCA e a transposição do Pilot DLT prevista para Maio 2023?

No curto prazo, as vantagens são significativas, mas no longo prazo, considerando a forma como a blockchain está a ser endereçada pelos legisladores, estamos a perder oportunidades estratégicas. Com efeito, os legisladores europeus têm estado consistentemente a demonstrar uma interpretação superficial das propriedades da blockchain cada vez que vem à baila a tokenização de activos.

O problema não vem tanto da legislação em si, mas do que lá falta, e da forma como os Smart Contracts representam direitos. É que a grande mais-valia da blockchain é ser auto-executável, e continuar a legislar à antiga, transformando os tokens em simples registos à guarda de outrem e sem vida própria, é estar a ignorar as suas principais vantagens.

Além disso, adiar a utilização da blockchain para gerir os activos financeiros mais importantes, aqueles que dão verdadeira vida às actividades económicas, é estar a perder terreno todos os dias em relação aos países que já resolveram o problema, como por exemplo os EUA, tal como já aqui explicado.

Do lado bom, para além da protecção legal acrescida ao investimento em utility tokens fungíveis (i.e., ICO) proporcionada pelo MiCA, o Pilot DLT deverá incentivar instituições financeiras tradicionais na UE a encarar a sério a tokenização dos primeiros activos, dadas as imensas vantagens operacionais envolvidas.

Considerando que gestão actual de acções e obrigações é morosa e complexa, a sua gestão com Smart Contracts vai permitir um aumento de eficiência sem precedentes no sector, o que vai ao encontro das necessidades actuais das instituições financeiras, sem excepção. Acresce que as vantagens para o consumidor final também são evidentes, dada a conveniência resultante da velocidade de processamento. Por outro lado, a partir do momento em que as instituições se sintam confortáveis na utilização da blockchain, a sua propagação a outras utilizações ganhará com certeza um novo fôlego.

Mas nem tudo são rosas. Os países da Common Law já estão a integrar no sector financeiro incumbente a tokenização deste tipo de activos (e não só) sem toda esta complexidade legislativa, pelo que, nem o MiCA, nem o Pilot DLT significarão uma vantagem competitiva entre a UE e outros blocos geopolíticos.

A competição vai acontecer, sim, mas entre as redes bancárias no âmbito da UE. Como sempre, ganharão os mais fortes, pelo que continuaremos a assistir a fenómenos de concentração como resultado do aumento de eficiência e das economias de escala. Consequentemente, é bom que as instituições financeiras tenham noção de que, com o Pilot DLT, a blockchain passou a fazer parte da arquitectura informática de suporte aos direitos geridos pelo sector. Ignorá-la será a partir de agora um erro estratégico evidente, daqueles que se costumam pagar caro a prazo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.